01 novembro 2010

POETA CONVIDADO: PEDRO CARRANO

Conheci o Pedro no Paraná, por ocasião do lançamento do meu livro Plano de Navegação na Feira do Poeta da Fundação Cultural de Curitiba, em 2000. Era estudante de jornalismo, convidado da escritora Bárbara Lia, e tinha um livro de poemas em projeto, o Bomba-relógio. Desde então, trocamos textos e livros, veio a Porto Alegre por ocasião do Fórum Social Mundial, e subiu a América Latina até o México, em viagem muito mais longa e dilatada no tempo do que as que fiz. Há mais dados sobre ele no final dessa postagem. Os poemas e os textos em prosa a seguir são da escolha do próprio Pedro.

Do livro de 60 sonetos Bomba-relógio:

55. “o carbono acorda diamante”, Helena Kolody

(mijo de sol, sobe lento a 13 de Maio)
o homem que cata lixo, roupa de cata-vento
carrega o carrinho como uma cruz, um pálio
entre restos e caixas, calado, lá dentro
um menino viaja, com olhar assustado
junto à bandeira do time, o cão e o rádio
olha seu pai: braços duros como de plástico
e o carrinho vai subindo, lento e pesado
mas a roda de arame gasto não suporta
o carrinho desmonta, e o lixo rua abaixo
penetra em tudo que encontra, nas caras fechadas
– dissipou-se pela rua o lixo em enxurrada –
no olhar de quem via, não durou um instante
e voltou a ser carbono o diamante


Do livro Dissidentes:

Para bertold brecht

por que você escolheu a selva das cidades?
duvidando do que se pensava natural
doeu nos seus olhos saber que um animal
como o homem, sobrevive na luta de classes?


Para eduardo galeano

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos”

as últimas braçadas
quase chegando ao cais
e à medida que chegamos
o horizonte se refaz


Para vladimir maiakovski

“nas calçadas pisadas de minha alma”

não há fim,
não há meio-fio
que encerre
as fronteiras,
que mapeie
o território
do grande acontecimento:
a fusão entre o eu,
os outros
e o eu por mim mesmo


Para leminski

noites vazias disfarçadas com risos,
o rigor da cerveja
esparrama a vida ao léu
os bêbados não incomodam
– narcisos –
desfilam suas misérias como um troféu


Para ana c. cesar

morrem as folhas.
pra onde vai seu cheiro?


Para oswald de andrade

aqui nesta capital brasileira pouco se reza
mas vamos fazer um esforço
pra que no feriado que se aproxima
deus nos abençoe trazendo o sol
(e a justa distribuição de terras também).


emily dickinson

meus ombros são frágeis galhos –
suportam apenas os pássaros


JULIA

Agora Julia não tem mais problemas pra viver o tédio do deserto cercado de sal onde está cravada a cidade de Uyuni.

Quando alguém sente sua falta, sabe onde achá-la: a menina fica das seis da tarde até de madrugada na única casa de internet da cidade, na única rua urbanizada, centro do vilarejo.

Conversando no msn, sem querer a jovem descobriu que o castelhano a leva mais longe que o quíchua ensinado pelos pais. Às vezes Julia fecha mais cedo a barraca do mercado onde trabalha sozinha, só pra entrar no chat. Não sente a mínima falta das moscas se aglomerando sobre as frutas que Julia tem de vender.

Mas Julia também não imagina que agora está perdendo, na única e velha praça de Uyuni, o cheiro da pele dos meninos que ainda se juntam por ali.

Uyuni, Bolívia. Março de 2005.


CARMEN

Eu viajava na caminhonete do lado de um casal que desceria no mesmo trecho da estrada que eu. Os dois sentavam-se cada qual de um lado da caçamba e, mesmo aos trancos e sacolejos, em meio à poeira especialmente grossa, eles não paravam de trocar olhares nas duras horas de caminho. Eram olhares com um quê de cúmplices, mas também infantis e, por que não, ousados para essas pradarias onde a reserva e o pudor são a regra. Difícil compor a cena, até porque eu os chamei de infantis, mas devo informar que cada um trazia dois filhos no colo, e a menina, ou melhor, a mãe, não parecia ter mais de 16 anos.

Depois descobri que na comunidade de Carmen o amor é lúdico, um jogo entre dois. Quando os homens estão apaixonados eles vão até a nascente do rio, acima de onde a sua amada lava a roupa e se banha. Daí eles lançam correnteza abaixo uma caixa com um caracol dentro, como que avisando: “Fique atenta, porque há alguém no povoado apaixonado por ti”. Cabe à mulher descobrir quem é o comandante da pequena nau e, depois, fazer o mesmo, como resposta.

Me explicaram que o costume não é algo rígido e é possível declarar-se a alguém de outros jeitos. Esse seria apenas um dos muitos jogos de amor em Carmen. Tanto melhor, porque, na dureza de qualquer caminho, poucas vezes a correnteza, o vento e o acaso capricharam tanto a ponto de levar a caixa e o caracol direto ao seu destino.

Ocosingo. Sudeste mexicano, outubro de 2005.


PEDRO CARRANO nasceu na capital paulista, em 1980. Em Curitiba, onde vive desde criança, foi repórter de jornal de bairro e enfrentou até os apuros da mídia corporativa. Desde 2006, integra a redação do jornal Brasil de Fato. Ao longo de 2005, atravessou a América Latina, quando cobriu a queda dos presidentes Carlos Mesa (Bolívia) e Lucio Gutiérrez (Equador), além do início da Outra Campanha do exército zapatista. Acompanhou também, em 2008, a vitória eleitoral de Fernando Lugo no Paraguai.

Viveu no México e na América Central, onde desenvolveu cursos de comunicação popular em comunidades indígenas maias. Reproduziu o curso em áreas de ocupação em Curitiba.

Em 2006, voltou ao sudeste mexicano como correspondente, durante a luta da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca, experiência que deve ser publicada no livro Antes da Tempestade (no prelo). Da perspectiva de escritor, sempre perseguiu neste período o que o amigo Paulo Venturelli recomendava: acumular experiências de vida.

Publicou textos nos jornais culturais Rascunho, Quixote, Panfleto (PR) e Fenestra (RS). Criou e abandonou pelo menos uns quatro blogs. Publicou contos no Jornal do Estado, agora organizados no livro Três vértebras e um primeiro testamento, que será publicado em breve. Tem trabalhos em poesia e teatro. Muitas coisas nas gavetas, algumas delas gritando para ter um destino. Outros vários panfletos perdidos aí pelo mundo.

É militante político e ajuda na construção de movimentos sociais como a Assembleia Popular. Casado com Manoela, gosta de pintura e tem uma filha de um ano, chamada Clara.

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28 setembro 2010

POETA CONVIDADO: GUTO LEITE

Inserido no clima gaúcho
Guto Leite está entre nós. Para quem ainda não o conhece, apresento: nasceu em Minas Gerais, é Linguista pela Unicamp e vive em Porto Alegre, por conta de uma especialização e um mestrado em Literatura Brasileira na UFRGS.

Tem quatro livros de poesia publicados: "zero um" (2010), "Poemas Lançados Fora" (7 Letras, 2007), "Sintaxe da Última Hora" (Scortecci, 2006) e "Reflexos"(FEME, 2000), além de premiações em concursos literários e presente em diversas coletâneas.

Cantor e compositor da banda Brique, grava seu primeiro CD em setembro deste ano. Premiado em festivais junto à banda Abracabrália, também como cantor e compositor, faz parte da mesma desde 2007. Pesquisa, na academia, a obra de Noel Rosa.

Roteirista dos filmes de curta-metragem "Estado Senil" (2009), "Revés" (2008) e "Bons sonhos, Maria"(2006). Argumentista da personagem Júlio César, que foi publicado pela primeira vez em setembro pela revista independente "Eixada". Dramaturgo, contista e romancista ainda inédito.

Aqui no RS, participou do projeto Alegria da Influência, com o poeta Paulo Seben, evento produzido pelo Jornal Vaia na Palavraria; conquistou assento no programa Dois Pontos, da Rádio Universidade (quartas, 13:30-14h), junto aos professores Luís Augusto Fischer, Homero Araújo e outros (no qual o conheci), e tem seu último livro à disposição nas livrarias.

Abaixo, três poemas de “zero um”, título que na capa do livro surge como ZER/ UM/ O, ante um fundo de zeros.

Ah, com todo esse currículo, ninguém se engane, Guto é de 1982.

Que seja bem-chegado!

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28 setembro 2009

POETA CONVIDADO: JOSÉ ANTÔNIO SILVA

A partir do Çoita - grupo que em 2000 reuniu os poetas Ronald Augusto, Oliveira Silveira, José Weis, Cândido Rolim, Jorge Fróes, Haroldo Ferreira, José Antônio Silva e este blogueiro - ficamos amigos. Zé, como quase todos o chamam, é daquele tipo de escritor que produz o seu trabalho, lança os seus livros, participa de eventos e encontros, e, sem apego à excessiva badalação, vai construindo uma trajetória sólida e continua. Sem pressa ou afobamento, como deve ser.

Tiques & Taques (São Paulo: Klaxon, 1984) foi seu primeiro livro de poesia, hoje raridade. Seguiu-se o excelente Lá vem o que passou (Porto Alegre, SMC, 1995), da Coleção Petit Poa. Desses, vão publicados abaixo um poema de cada.

É autor da novela Diabo Velho (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de O nome do Fuinha, e outras histórias de crime, mistério e algum amor. (Porto Alegre: AGE, 2003). Resenhas e ensaios jornalísticos estão reunidos em A Impressão da Cultura (Porto Alegre: Sulina, 1990).

Mas começou a publicar na década de 70, no antológico Há Margem (Porto Alegre: Lume, 1975), com outros doze autores, entre os quais Nei Duclós e Sérgio Capareli. O título não evidenciava apenas a literatura marginal produzida na época, indicava uma convicção na possibilidade de superar os anos difíceis de ditadura. Seguiu-se Vício da Palavra (São Paulo: Garnizé,1977), esforço cooperativado de 28 escritores, entre eles Caio Fernando Abreu, e ilustradores como Jayme Leão, Chico Caruso, Magliani, Santiago e Cláudio Levitan. Na década de 80, com os poetas Celso Gutfreind e José Weis, articulou o Vício e Verso, que fazia apresentações de poesia. Participou da revista-livro Continente Sul-Sur nº 9 (Porto Alegre: IEL, 1998.) e de Antologia do Sul, poetas contemporâneos do RS (Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001), reunião de 90 poetas em plena atividade no período.

Mais poemas, contos e crônicas de José Antônio Silva, que também é jornalista, em Lavra Livre, blogue no qual se diverte: agora/ como um cão/ eu curto um post.

PURA

És tão pura,
sua puta
- além da imagem.

És puríssima
- Deus sabe.
Sabe o frade?

És a puta
sem pecado,
rito de passagem.

És purinha
- toda puta –
entre as comadres.

És pura mistura,
o tanto da flor,
a cara de laje.

És tão puta
- mas tão pura –
que isso arde.

És pura puta,
minha santa
- és o auge.

Lá vem o que passou, Col. Petit Poa,
Porto Alegre, SMC, 1995.



GAFANHOTO SÓ

Lá vem o gafanhoto
no meio da rua
frágil ágil
(na inconsciência
do quanto é vulnerável)

Um palito
com duas pernas secas
e dois braços tal e qual
enfrentando – chinelo de dedo –
o mundo moderno
ocidental
digital
exato caos

Lá vem ele
o gafanhoto
- por favor, um pouco de emoção! –
rufem os tambores
do coração
para o triplo salto mortal:
um gafanhoto
na Avenida São João

Tiques & Taques, São Paulo: Klaxon, 1984.


PORTO

Havia um porto premeditado
entre peixes
navios
e águas virtuais;

havia um ponto no futuro
ainda antes de haver porto
barcos
ou qualquer água;

havia um poço em ebulição
onde tudo se formava
definia
projetava;

havia um posto avançado da vida
- como a conhecemos -
no tecido do infinito.

Havia a cintilação do que há hoje
como imagem
que apenas esperava:
um porto singelo
num estuário de lago e rio
onde um pequeno bote
a remo
deixa seu rastro invisível
lento
pela memória das águas.

Antologia do Sul, Poetas Contemporâneos do RS,
Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001.


Poemas de José Antônio Silva.
Publicação autorizada pelo autor.
[42.969 páginas visitadas até o instante dessa postagem]

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13 setembro 2009

POETA CONVIDADO: NEI DUCLÓS

Outro dia, numa entrevista, insta-ram-me a elencar poetas da minha predileção. Sempre encaro essa pergunta como sugestionadora de leitura. Citei vários, de todo lugar e época, e dois gaúchos: Nei Duclós e Oliveira Silveira. Poetas reconhecidos, merecem leitura dedicada e um público cada vez mais amplo. O primeiro livro de Nei é hoje um clássico, Outubro (IEL/A Nação, 1975). E que clássico aqui não signifique coisa antiga: são poemas que têm muito a dizer, hoje e sempre, como prova a sua intensa veiculação em sites, blogues e perfis do Orkut. Depois veio No meio da rua (LP&M, 1979), com um belo e bem-humorado prefácio de Mario Quintana (a reserva que este se impunha diante de tais obrigações literárias é a melhor indicação do seu apreço pela obra). Ainda no âmbito da poesia, No mar, veremos (Globo, 2001). Titulo que é já um poema, recupera com alta qualidade temas como o rio e o mar, ambos tão próximos à trajetória do autor, numa perspectiva que foi sempre, e é, a sua: humanizar o ser humano (sem excusas para quem enxergar redundância). Nei publicou a seguir o romance Universo baldio (W11/Francis, 2004), prefaciado por Raduan Nassar; contos e crônicas em O refúgio do príncipe, histórias sopradas pelo vento (Cartaz, 2006); e o juvenil, em parceria com Tabajara Ruas, Meu vizinho tem um rottweiler - e jura que ele é manso... (Galera, 2007). ORKUTÍADA Nei Duclós O Orkut é feito de despedidas (Bom finde, boa noite, até a próxima) De mensagens não solicitadas (Jesus te ama muito, viu?) De comunidades bizarras (Adoradores de melão em fatias) De fóruns militantes (vocês são todos de direita) O Orkut vive inacessível (No donuts for you) Com fotos ocultas (Só para os amigos) Perfis clonados (Cool and nerd, baby) Nacionalidades tortas (Ilhas Fiji, Tuvalu) O Orkut é feito de convites (Venha mastigar conosco) De pura espionagem (passeei nos teus scraps) De auto-celebração (Convença-se que sou foda) De tópicos de esculacho (vai aprender a ler) O Orkut só dá dor de cabeça (quem será o anonymus?) Mantém no ar os mortos (esteja onde você estiver) Provoca mal-entendidos (vi você ontem na Argélia) Atrai inúmeros encostos (me adiciona, vai) O Orkut é para solitários (postagens às duas da manhã) Alma em busca de si mesma (search meu nome completo) Coração fechado para balanço (é que você não me conhece) Corpo imóvel na cadeira (quis sair, mas havia trânsito) Mas às vezes vem um testemunho (o que dizer de você?) Um poema já esquecido (lembrei do que me escreveste) Uma amizade perdida (você não é Ô, não é Á?) E tudo muda no Orkut (quem será que me visitou?) O Orkut se repete como os dias Deveríamos abandonar o Orkut Mas como saberíamos da existência alheia? Como repartiríamos a amargura da distância? Como evitaríamos tantos reencontros? Como abriríamos mão da vida? Como seríamos fora das paredes? Como deixaríamos perguntas no ar? O Orkut nos mantém afastados Com todo mundo de tocaia Em busca de algumas vontades De retomar os quintais De subir em árvore De cruzar o rio a nado De escorregar no parque De ler um livro Seria bom, depois de uma trilha Voltar ao Orkut para contar como foi Mas aí correríamos o perigo De nos perguntar: para quê? Se tudo acaba em frente à tela Mesmo que a gente dê a volta ao mundo Mesmo que a gente suba no Himalaia Mesmo que a gente engula o mar oceano O Orkut, como a vida, não serve para nada Por isso me deixe fazer uma pesquisa Pedir socorro, encontrar o que não devia É por isso que passo horas no Orkut Horas, não, segundos Mas são tantos ao longo do tempo Que se fossem unidos num só comboio Daria para ir até a Lua e voltar [Publicado com autorização do poeta] Leia mais: www.consciencia.org/neiduclos/view/Topic/Poesia http://www.outubro.blogspot.com/ www.revista.agulha.nom.br/neiduclos.html

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05 dezembro 2008

QUATRO POETAS

Convidei Bárbara Lia, Laurene Veras, Neli Germano e Juliana Meira para abrir esta sessão do blogue. Bárbara vive em Curitiba. As outras três, em Porto Alegre. E convido os leitores a se aproximarem dos seus poemas.

.1








PROFANA

A cor do amor é branca,
e o amor tem uma covinha do lado direito do rosto
e o amor me olha como alguém
que jamais vai tirar a minha calcinha
e gozar o céu dentro de mim.
O amor sempre vai me olhar
como se eu estivesse num altar de papel.
Para o amor, eu sou uma rima
e rima não tem vagina.
Para o amor, eu sou uma ode
com uma ode ninguém fode.
Eu sou um verso alexandrino
jamais tocado pelo herdeiro deste nome.
Eu sou a palavra, e a palavra, a palavra é Deus
Deus ninguém come, mas,
será que beber
pode?

BÁRBARA LIA
Noir. Curitiba: ed. Autor, 2006.


SEGUNDA MORTE

O pelotão avança, cascata de passos
Em adágio, botas resvalando relva.

Coração acelera. O homem calvo cobre
Meus olhos. Aguardo o fim.

Lembro negro olhar em chamas, encanto.
Fatal certeza... Morrer? Já morri por ti.

BÁRBARA LIA
O sal das rosas. São Paulo: Lumme, 2007.

http://chaparaasborboletas.blogspot.com/
http://soulbarbaralia.blogspot.com/

Bárbara Lia é poeta, escritora e professora de História. Publicou os livros de poesia O sorriso de Leonardo (Kafka, 2.004), Noir (ed. do autor, 2.006), O sal das rosas (Lumme, 2.007), A última chuva (Mulheres Emergentes, 2.007), e o romance Solidão Calcinada (Secretaria Estadual da Cultura / Imprensa Oficial do Paraná, 2007).

2 -------------------------------------------------------------------------------










LEIA-ME

Se você
sente prazer
em me ler,
então seja eu
uma Bíblia Sagrada.
Tenha fé,
e me percorra,
em busca de Deus,
ou do Nada.

Mas se eu for em ti
um periódico,
até permito
que te deleites
com minhas imagens.
Nada metódico,
anote números
em minhas margens.
E depois
me abandone
ao esquecimento,
até desconjuntar-me o vento.

Eu quero mesmo
é ser em ti
um livro raro.
Que te admire
manusear-me
como eu fosse
teu privilégio.
Um artigo
dos mais caros,
uma homenagem
à memória,
um poema,
ou uma história.

E depois
de te entranhar
meu conteúdo,
antes do sono,
com cuidado
me descansar
no criado-mudo.

LAURENE VERAS


TRINTA E TRÊS

Desperdiço
o pulso
alguns vícios
outros sustos
duas ou três
insuspeitadas alegrias.

Esperando
para jogar os sapatos
aos corvos
e atravessar a neve descalça.

Diga trinta e três.

Ao fundo,
aquele
tango argentino.

LAURENE VERAS

http://lulinlulin.blogspot.com/
Laurene Veras é poeta, licenciada em Filosofia pela UFRGS, recentemente aprovada para o Mestrado em Literatura de Portugal e Países Africanos de Língua Portuguesa na mesma universidade, tendo antes concluído as cadeiras, sem dissertação, do Mestrado em Literatura Portuguesa na USP. Publicou poemas na revista Vox, nos jornais Blau, Vaia e Zero Hora.
3 -------------------------------------------------------------------------------










CASA DE INFÂNCIA

Tempo é criança jogando, brincando. Reinado de criança.
Heráclito – Fragmento 52


1

Ensaboar – enxaguar
Secar louça – guardar

- Deixa de ser lerda - dizia minha mãe
Ser lerda é brincar de faz-de-conta
Refletir-se nas bolhas de sabão...

NELI GERMANO
Casa de Infância, inédito.

2

As notícias chegavam lá em casa pela voz de um rádio
e de um jornal enorme, eu até cabia dentro dele.
O rádio sabia até quando algum parente nosso
passava mal ou falecia, endereço e tudo.
Narrava jogo de futebol e o Movimento pela Legalidade.
Meu pai achava importante saber o que acontecia no Mundo.
Ele e um tal de seu Ezalter ficavam horas e horas
conversando sobre essas coisas de gente grande.
O jornal tinha uma coluna infantil aos domingos,
Que eu lia todinha, de pernas pro ar...
Meus olhos espicharam junto comigo,
quando me apresentei ao Mário Quintana
neste mesmo jornal.

NELI GERMANO
Casa de Infância, inédito.

Neli Germano é poeta e concluiu parte dos cursos de Letras, Filosofia e Serviço Social. Participa das antologias Poemas no Ônibus, Garimpando Letras, Pérgula Literária, Vínculos, Gente da Casa e do CD Confraria de Poetas. Publicou poemas em Zero Hora e participa de recitais, destacando-se o ‘Com as mulheres são outros 500’, no Teatro do SESI.

4 -------------------------------------------------------------------------------



1

sobre o papel
descansa a mão do poeta

um a um como notas
de orquestra
os versos lhe saltam à idéia

o velho maestro então lhes põe forma
rabisca contorna
verso a verso se arrisca
recita

por entre os dedos a caneta
transborda a tinta
flutua a pena

da mão trêmula à escrita
rege um poema

JULIANA MEIRA
inédito


2

o canto
da sala
cujo pó guarnece
vê o sol que desce
da vidraça entreaberta
desabitado ouve
a passarada o jornaleiro
o cachorro a piazada
exposto à poeira
da vida que é lá fora
na calçada
pena que o vento lhe condena
à luz míngua sorrateira
vexado ouve a gente toda
barulhenta
o canto
cala

JULIANA MEIRA
inédito
Juliana Meira é poeta e advogada. Nasceu em Carazinho e reside em Porto Alegre desde 2006. Poeta de sangue novo e promissora, participa de recitais, e apresentou-se no 2° PortoPoesia.

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04 dezembro 2007

LAU SIQUEIRA - TEXTO SENTIDO

Poeta gaúcho nascido em Jaguarão, Lau Siqueira acaba de lançar Texto Sentido, seu quarto livro de poemas, em João Pessoa-PB, cidade à qual se integrou há vários anos, sendo hoje diretor da Fundação Cultural do município. Estou para receber um exemplar, mas não me contive. Matei a curiosidade via internet com o poema abaixo, e acrescentei outros dois antes publicados. Espiem só:

DEBANDADA

nada do meu amor restou
nem as águas do mar morto
nem o vinho em qualquer
porto

nada do meu amor restou
além dos cacos de espelho
e um eu que é outro


Texto Sentido, 2007


1965

rabisquei
poemas
e insultos
nos muros
quem dera

meus olhos
de menino

tão verdes
tão puros

nas mãos
fechadas

butiás maduros


BARULHO

palavra
por palavra
minha úlcera
de verbos
tece aos poucos
a membrana
do silêncio


Lau Siqueira



Novo blogue: http://www.t-e-x-t-o-s-e-n-t-i-d-o.blogspot.com
Blogue anterior:
www.lausiqueira.blogger.com.br
Blogue 2003:
www.poesiasim.blogspot.com

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20 junho 2007

POETA CONVIDADA: NELI GERMANO


NO TERMINAL

Sentado, ele ria - ria muito
Nada via - e ria
Roupa rosto sapato, em fatia
Dentes grandes, olhar estreito

Agachando-se em sua caixa de engraxate,
De cu pras estrelas,
a-dor-mecia


CASA DE INFÂNCIA

1

Meia-água
Madeira novinha, perfurada por nós de pinho
Coberta de telhas vermelhas: francesas e cumeeiras.

Por que meia água?
Como poderia uma tábua nova ser furada? e por nós...
De que lugar teriam vindo as telhas que não eram francesas?


2

Minha mãe amava juntando latas de azeite vazias,
e meu pai, à noite, desmanchando-as com suaves marteladas,
até tapar todos os buracos dos nós das tábuas.
Logo logo nasceria mais um bebê,
minha mãe teria que se proteger do minuano
na quarentena.


3

Meu pai amava construindo um puxadinho:
a lavanderia da casa.
E minha mãe, lavando roupas:
uma trouxa por dia.


Neli Germano, 2007

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07 dezembro 2005

POETA CONVIDADO: CARLOS BESEN


Como sempre faço, pedi para o poeta Carlos Besen me enviar dois poemas. Ele escolheu os que venceram o concurso Palcohabitasul da 51ª Feira do Livro de Porto Alegre, 2005. Fresquinhos e inéditos, aqui estão:


.
RACIONAL, RACIONADO


Em migalhas,

a luz do milho ruída em mim,
indago se estou nu
ou se sou núcleo.

Aos farelos,

ignoro se disseminado
ainda semeio.

Íntegro,

estive amarelo,
mas não estava vencido.

Era tarde,
não me convenci.

Devorei
minha própria lucidez:

em migalhas,

sobro o que nem sequer cogito.



.

ROUPA DE ESTAR FORA DE CASA

Ao sair de casa, bagunço o aroma da mala.
Ensino os tecidos a compreender as cicatrizes
do amassado, prometo mostrar a água como ferida,
mas a roupa amarrotada precipita o mar roto, remoto
como areia de praia, que só jaz na praia.

Não me extravio com a cidade de dentro
se abandono roupas demais no armário. Um cheiro
que não partiu comigo me prende ao amargo.
Uma camisa que deixo por causa de uma mancha
reclama a falta que um sinal faz à pele do braço.
Há coisas que são o corpo.

Não me confundo com a cidade de fora
se meu tronco for uma prateleira vazia,
brevidade abortada de um farrapo. Mesmo uma
árvore se veste. Se uma roupa me tem amor,
sinto que meu esqueleto está em cabide errado.
Nu, vou longe sem sair do umbigo.
A nudez é a sua própria casa,

- a cidade, uma maneira de estar vestido.



.
CARLOS BESEN, Porto Alegre - RS, 2005.

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09 novembro 2005

POETA CONVIDADO: RONALD AUGUSTO


FISSURAS DE LINGUAGEM

1.
esta é a última semana mesmo
depois partir rumo ao meu tempo
(tempo cada vez mais seco
no chão não assusta o esterco:
enxuto o sol lhe foi extremo
a umidade teve bom termo)

estava a procurar um termo
não de todo limpo nem isento
de gralhas para dizer a tempo
de não sonhar o que a custo zero
pulsou em meu vulto-pensamento
mas só virtualmente marquei tento
não consegui conduzi-lo ao vento
dizer-lhe: rua
..........................vai ao sereno

entendi vão todo movimento
no tocante a este momento
difícil significar a esmo
o que era no fundo não lembro
uma idéia meia-sola sestro
nada que merecesse um metro
rimas de lado a lado um erro


2.
faltando três horas e pouco
o que posso dizer que não
seja arremate de louco?
faltando três horas de estrada
posso costurar breves panos
anos doidos com linha magra

posso perguntar pelo início:
por que você foi tão confuso?
respondo: lia des(a)tino
pois minha mão não anotava
de outro modo o meu destino

erros estocásticos são
comuns em semelhante ofício
talvez eu tenha ido longe
longe demais nesta fissura
de linguagem


de Confissões Aplicadas,
Porto Alegre: AMEOP, 2004.

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23 outubro 2005

POETA CONVIDADO: JOSÉ WEIS

.
EPIFANIAS

Trocar, trocar, tecer
e uma desconfiança
de não se traduzir
tudo no todo deste
tácito tesão epidérmico
homérica distância
entre o dito e o vivido
ter que contar
com o que se tem.



MÍNIMOS A DOIS


I

Telefonema:

- Me espera de pau duro!
Desliga preparado.


II

-Troco uma massagem
nos meus pés por um boquete.
-Eu topo!


JOSÉ WEIS, Porto Alegre, RS,
do livro em preparo, Doce desdém dos desprezados.

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07 junho 2005

POETA CONVIDADO: JORGE FRÓES


DANÇO


Queres saber por que eu danço
danço porque vozes do passado
cantam para mim
e então respondo.
Danço porque sou Kikongo,
Kimbundo, Baluba...
Danço para que a poeira
que assenta em meu corpo
seja somente do ato de dançar.
Danço para libertar minha africanidade.
Danço porque o vento dança,
as flores, os bichos,
e esta é minha forma
de integração.
Danço para que lanças-de-desrespeito
não me atinjam,
mas sobretudo danço
porque vozes do passado cantam
e eu respondo.

Jorge Fróes, Porto Alegre-RS

Publicado no encarte Revista Negra,
da Revista Porto e Vírgula,1995




MAR


Ó mar !
Esquecer dói mais que lembrar.
Lembrar é assegurar novos dias.

Há no fundo do teu ser,
imersa, uma dor imensa
que revolve em teu
gigantesco estômago
o amargo gosto
de uma indesejável alimentação.

Das longas travessias...
Mar vermelho,
mar negro,
milhares,
mar morto.

Ó mar !
Esquecer dói mais que lembrar.


Jorge Fróes, Porto Alegre-RS

Publicado na Revista Continente Sul /1997

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01 maio 2005

POETA CONVIDADA: BÁRBARA LIA

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A Bárbara publicou em 2004 O Sorriso de Leonardo (poesia), pela Kafka Edições Baratas, de Curitiba. Está nas revistas Etcetera (nº 3) e Coyote (nº 10), e foi publicada pelo jornal Rascunho. É autora de três romances ainda inéditos.
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UM POEMA MEU PARA O GENIAL VAN GOGH:
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Vincent,
O vento mistral derruba tuas telas.
Não tens dinheiro para as aquarelas.
Théo vendeu um único quadro teu.
Todas as amadas te dizem adeus.
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As estrelas não são como as pintas...
Arlens não te suporta, óh louco artista!
Há em ti um fulgor que ninguém alcança.
Nem sabem que és louco de tanta esperança.
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Van Gogh,
Teus quadros valem milhões.
Teus girassóis estão em toda parte.
Nos museus do mundo.
Na sétima arte.
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Orgulho da Holanda...
A ruiva fisionomia,
O triste olhar.
A mensagem implícita
Na vida, nas telas, nas cartas:
Não desista!
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Bárbara Lia, Curitiba-PR
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MENINO NA BICICLETA
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Vejo asas em teus olhos.
Jardins orientais.
Cerejeiras & Origamis.
Calma alma zen
folha pálida transparente
(O vento não leva
O fogo não queima)
Em tuas pinturas
cintila ardor
na cor de mantos budistas,
colorindo peixes e pássaros.
Desejo sagrado:
Desças da bicicleta!
Caminhe duas décadas
até esta sala,
beba minha pele
morango & champagne.
Anjos, peixes e pássaros
debandarão com nosso alarde,
colorindo o céu
de rubros-laranjas-carmins
como um mural de Diego Rivera.
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Bárbara Lia,Curitiba-PR
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13 abril 2005

POETA CONVIDADO: CEZAR DIAS



DENTRO


não dispenso
ao amor palavras
faz tempo

acostumei-me
a ele
internalizei

está no âmago?
está no estômago?

adianta
meter o dedo
na garganta?


(inédito)


Cezar Dias, Porto Alegre-RS

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