28 setembro 2009

POETA CONVIDADO: JOSÉ ANTÔNIO SILVA

A partir do Çoita - grupo que em 2000 reuniu os poetas Ronald Augusto, Oliveira Silveira, José Weis, Cândido Rolim, Jorge Fróes, Haroldo Ferreira, José Antônio Silva e este blogueiro - ficamos amigos. Zé, como quase todos o chamam, é daquele tipo de escritor que produz o seu trabalho, lança os seus livros, participa de eventos e encontros, e, sem apego à excessiva badalação, vai construindo uma trajetória sólida e continua. Sem pressa ou afobamento, como deve ser.

Tiques & Taques (São Paulo: Klaxon, 1984) foi seu primeiro livro de poesia, hoje raridade. Seguiu-se o excelente Lá vem o que passou (Porto Alegre, SMC, 1995), da Coleção Petit Poa. Desses, vão publicados abaixo um poema de cada.

É autor da novela Diabo Velho (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de O nome do Fuinha, e outras histórias de crime, mistério e algum amor. (Porto Alegre: AGE, 2003). Resenhas e ensaios jornalísticos estão reunidos em A Impressão da Cultura (Porto Alegre: Sulina, 1990).

Mas começou a publicar na década de 70, no antológico Há Margem (Porto Alegre: Lume, 1975), com outros doze autores, entre os quais Nei Duclós e Sérgio Capareli. O título não evidenciava apenas a literatura marginal produzida na época, indicava uma convicção na possibilidade de superar os anos difíceis de ditadura. Seguiu-se Vício da Palavra (São Paulo: Garnizé,1977), esforço cooperativado de 28 escritores, entre eles Caio Fernando Abreu, e ilustradores como Jayme Leão, Chico Caruso, Magliani, Santiago e Cláudio Levitan. Na década de 80, com os poetas Celso Gutfreind e José Weis, articulou o Vício e Verso, que fazia apresentações de poesia. Participou da revista-livro Continente Sul-Sur nº 9 (Porto Alegre: IEL, 1998.) e de Antologia do Sul, poetas contemporâneos do RS (Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001), reunião de 90 poetas em plena atividade no período.

Mais poemas, contos e crônicas de José Antônio Silva, que também é jornalista, em Lavra Livre, blogue no qual se diverte: agora/ como um cão/ eu curto um post.

PURA

És tão pura,
sua puta
- além da imagem.

És puríssima
- Deus sabe.
Sabe o frade?

És a puta
sem pecado,
rito de passagem.

És purinha
- toda puta –
entre as comadres.

És pura mistura,
o tanto da flor,
a cara de laje.

És tão puta
- mas tão pura –
que isso arde.

És pura puta,
minha santa
- és o auge.

Lá vem o que passou, Col. Petit Poa,
Porto Alegre, SMC, 1995.



GAFANHOTO SÓ

Lá vem o gafanhoto
no meio da rua
frágil ágil
(na inconsciência
do quanto é vulnerável)

Um palito
com duas pernas secas
e dois braços tal e qual
enfrentando – chinelo de dedo –
o mundo moderno
ocidental
digital
exato caos

Lá vem ele
o gafanhoto
- por favor, um pouco de emoção! –
rufem os tambores
do coração
para o triplo salto mortal:
um gafanhoto
na Avenida São João

Tiques & Taques, São Paulo: Klaxon, 1984.


PORTO

Havia um porto premeditado
entre peixes
navios
e águas virtuais;

havia um ponto no futuro
ainda antes de haver porto
barcos
ou qualquer água;

havia um poço em ebulição
onde tudo se formava
definia
projetava;

havia um posto avançado da vida
- como a conhecemos -
no tecido do infinito.

Havia a cintilação do que há hoje
como imagem
que apenas esperava:
um porto singelo
num estuário de lago e rio
onde um pequeno bote
a remo
deixa seu rastro invisível
lento
pela memória das águas.

Antologia do Sul, Poetas Contemporâneos do RS,
Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001.


Poemas de José Antônio Silva.
Publicação autorizada pelo autor.
[42.969 páginas visitadas até o instante dessa postagem]

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25 setembro 2009

A ARTE DE STEFAN DOITSCHINOFF

Stephan - é brasileiro, gente - saiu de São Paulo e foi morar no interior da Bahia. Pediu licença para pintar as paredes das casas dos moradores e outros espaços mais. O vídeo mostra a interação que se dá e a progressiva sensibilidade do artista quanto à cultura local. Dica do artista plástico porto-alegrense Marcelo Monteiro:

TEMPORAL : The Art of Stephan Doitschinoff (aka Calma) from Jonathan LeVine Gallery on Vimeo.

16 setembro 2009

JANE TUTIKIAN ANALISA "QUICHILIGANGUES"

A escritora Jane Tutikian, professora da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Literatura Comparada, escreveu a apresentação de Quichiligangues, meu livro de poesia lançado em 2008. Atuando na área de Literatura Portuguesa, dedica-se à obra de Fernando Pessoa e poetas portugueses e africanos. Entre mulheres (WS, 2005), livro de contos, e Fica ficando (Edelbra, 2007), novela juvenil, estão entre suas últimas publicações. Recebeu os prêmios Jabuti, Açorianos e Tibicuera.

UM POETA DIFERENCIADO

Quem sabe/ sabe o quê?
S.S.

Quichiligangues é o segundo livro de poesias publicado de Sidnei Schneider, o primeiro foi Plano de Navegação (Dahmer, 1999). Não se pense, entretanto, que, por ser apenas o segundo, se está diante de um poeta iniciante, à procura de um caminho. Não! Está-se, isso sim, diante de um desses poetas que já nascem maduros, o primeiro livro já mostrava isso, e, por isso mesmo, aqui se reafirma um poeta diferenciado.

Em Schneider, não há a pressa da poesia fácil que desliza sobre superfícies frágeis e transitórias, tão comum no nosso tempo. Ao contrário, sem medo do modismo contemporâneo, como a cantora de ópera, sua poesia emerge da sensibilidade do homem, da inquietação estética do poeta, do conhecimento do mundo mitológico do bacharel em Letras. Esta é a fórmula de construção de Quichiligangues.

Abre o livro o belíssimo “De como lidar com rio”. Ao resgatar essa metáfora universal da vida, o poeta faz uma fala delicada e firme a este tempo, caracterizado pelo individualismo, pela descrença nos valores simples, pela destruição inconseqüente em nome de um viver feito de paradigmas relativos. Eis seu alerta: Não é pisando em peixes/ que conseguiremos atravessá-lo ou ponte não nos dará conhecê-lo. E, sabiamente, como todo o grande poeta, Schneider não impõe verdades: semeia dúvidas, incertezas, os talvez-caminhos: Com os braços dar forma/ ao nosso sonho de asas? Ou, quem sabe, De dentro domá-lo para sempre/ com um simples remo? A temática da água volta em “Oceaníade” e “Poema de inverno”, “Elegia da cantora de ópera” e “À modelo-vivo”. Todos da mesma qualidade.

“Tirésias” inaugura um outro tema recorrente do livro e preocupação essencial do poeta: ter a visão e não ver. Ele também está lá, de forma sutil, em “Os boxeadores”.

A tentativa de diálogo com a porta e o apelo desesperado do final: Fala! é o grito da incomunicabilidade e da solidão do amor, das pessoas, do mundo. O único mutismo quedo e exato que no vento produz carícias é o da evocação de Carlito.

“Descanso” e “Recomeço” dialogam entre si, feito exposição de desumanização, mas não há lugar para a desesperança na poesia de Sidnei Schneider, a desesperança não o [o trabalhador] adoece. “Ganha pão” se instaura também neste eixo temático, assim como “O bandônio”: agora quero alegria/ agora quero dançar/ mas cadê o bandônio!

A contemporaneidade ainda é vista crítica e delicadamente em “Cerâmica” ou em “Quem é que sabe?”, mesmo porque, se pergunta o poeta, Quem sabe,/ sabe o quê?

“Prometeu” é, sem dúvida, a síntese do fazer poético de Sidnei Schneider em Quichiligangues. Prometeu significa aquele que premedita, evoca aquele que, na mitologia, consegue, com habilidade, enganar Zeus. Aí, anuncia o poeta: Agrada-me o chegar perto do fogo,/ no tão próximo onde se desfazem/ as certezas, amo o gesto e o risco,/ a aventura do fogo. De fato, Quichiligangues é a aventura do fogo, é o risco da aventura, o desfazimento das certezas. É onde reside o prazer de sua leitura: na inquietação semeada no leitor. E quem há de negar que este é o melhor do melhor da poesia? Fecha-se o livro. Continua-se Quichiligangues.

JANE TUTIKIAN, junho 2008

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QUATRO POEMAS













NUMEROLOGIA

o medo era tanto
que ele marcou encontro
às 18h37min, e tinham
que se ver exatamente
às 18h37min,
e ele compareceu
agarrado e nu
nos números,
mas ela não.


FALTA DE PREVISÃO

os antigos mesopotâmicos
esqueceram de avisar
os horoscopistas
que nos dias de capricórnio
o sol não
está mais
nos limites
de capricórnio
como na época
dos antigos mesopotâmicos,
e agora, meu deus?


A AÇÃO DO ESPÍRITO

o poeta cria
que baixavam do espírito
gerente do universo ltda
os versos que produzia,
até que um dia
o espírito baixou
e deu uns sopapos
no poeta
por escrever
tão mal.


TESE CIRCULAR

o poeta jurava
que a poesia
não servia
pra nada,
foi contratado.
passou a usar versos
para vender coisas
que ninguém precisava,
ganhou carro e casa.
e continuou a defender
que a poesia
não servia pra nada.


Sidnei Schneider

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13 setembro 2009

POETA CONVIDADO: NEI DUCLÓS

Outro dia, numa entrevista, insta-ram-me a elencar poetas da minha predileção. Sempre encaro essa pergunta como sugestionadora de leitura. Citei vários, de todo lugar e época, e dois gaúchos: Nei Duclós e Oliveira Silveira. Poetas reconhecidos, merecem leitura dedicada e um público cada vez mais amplo. O primeiro livro de Nei é hoje um clássico, Outubro (IEL/A Nação, 1975). E que clássico aqui não signifique coisa antiga: são poemas que têm muito a dizer, hoje e sempre, como prova a sua intensa veiculação em sites, blogues e perfis do Orkut. Depois veio No meio da rua (LP&M, 1979), com um belo e bem-humorado prefácio de Mario Quintana (a reserva que este se impunha diante de tais obrigações literárias é a melhor indicação do seu apreço pela obra). Ainda no âmbito da poesia, No mar, veremos (Globo, 2001). Titulo que é já um poema, recupera com alta qualidade temas como o rio e o mar, ambos tão próximos à trajetória do autor, numa perspectiva que foi sempre, e é, a sua: humanizar o ser humano (sem excusas para quem enxergar redundância). Nei publicou a seguir o romance Universo baldio (W11/Francis, 2004), prefaciado por Raduan Nassar; contos e crônicas em O refúgio do príncipe, histórias sopradas pelo vento (Cartaz, 2006); e o juvenil, em parceria com Tabajara Ruas, Meu vizinho tem um rottweiler - e jura que ele é manso... (Galera, 2007). ORKUTÍADA Nei Duclós O Orkut é feito de despedidas (Bom finde, boa noite, até a próxima) De mensagens não solicitadas (Jesus te ama muito, viu?) De comunidades bizarras (Adoradores de melão em fatias) De fóruns militantes (vocês são todos de direita) O Orkut vive inacessível (No donuts for you) Com fotos ocultas (Só para os amigos) Perfis clonados (Cool and nerd, baby) Nacionalidades tortas (Ilhas Fiji, Tuvalu) O Orkut é feito de convites (Venha mastigar conosco) De pura espionagem (passeei nos teus scraps) De auto-celebração (Convença-se que sou foda) De tópicos de esculacho (vai aprender a ler) O Orkut só dá dor de cabeça (quem será o anonymus?) Mantém no ar os mortos (esteja onde você estiver) Provoca mal-entendidos (vi você ontem na Argélia) Atrai inúmeros encostos (me adiciona, vai) O Orkut é para solitários (postagens às duas da manhã) Alma em busca de si mesma (search meu nome completo) Coração fechado para balanço (é que você não me conhece) Corpo imóvel na cadeira (quis sair, mas havia trânsito) Mas às vezes vem um testemunho (o que dizer de você?) Um poema já esquecido (lembrei do que me escreveste) Uma amizade perdida (você não é Ô, não é Á?) E tudo muda no Orkut (quem será que me visitou?) O Orkut se repete como os dias Deveríamos abandonar o Orkut Mas como saberíamos da existência alheia? Como repartiríamos a amargura da distância? Como evitaríamos tantos reencontros? Como abriríamos mão da vida? Como seríamos fora das paredes? Como deixaríamos perguntas no ar? O Orkut nos mantém afastados Com todo mundo de tocaia Em busca de algumas vontades De retomar os quintais De subir em árvore De cruzar o rio a nado De escorregar no parque De ler um livro Seria bom, depois de uma trilha Voltar ao Orkut para contar como foi Mas aí correríamos o perigo De nos perguntar: para quê? Se tudo acaba em frente à tela Mesmo que a gente dê a volta ao mundo Mesmo que a gente suba no Himalaia Mesmo que a gente engula o mar oceano O Orkut, como a vida, não serve para nada Por isso me deixe fazer uma pesquisa Pedir socorro, encontrar o que não devia É por isso que passo horas no Orkut Horas, não, segundos Mas são tantos ao longo do tempo Que se fossem unidos num só comboio Daria para ir até a Lua e voltar [Publicado com autorização do poeta] Leia mais: www.consciencia.org/neiduclos/view/Topic/Poesia http://www.outubro.blogspot.com/ www.revista.agulha.nom.br/neiduclos.html

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