09 fevereiro 2009

POESIA BURLADA: AS DUAS ÚLTIMAS

BURLA DE ALBERTO CAEIRO, O GUARDADOR DE REBANHOS:

Encontrei um novo amigo na rua, disse que recebeu e-mail com um poema do Alberto Caeiro, e adorou. Começava assim: "Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória". Não é, porém, um texto de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, autor de O guardador de rebanhos. O texto é do cronista mineiro Rubem Alves. Leva por título, justamente, Escutatório, e começa assim: "Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular." Como Caeiro é citado no parágrafo seguinte, algum irresponsável ou apressadinho trocou o que não podia ser trocado e espalhou pela internet. (Texto completo em A Casa de Rubem Alves)

BURLA DE CARTOLA, O GUARDADOR DE CARROS:
Com Cartola, a coisa foi pior. De variadas profissões ao longo da vida, entre as quais a de guardador de carros, não tirou do nada (ou da cartola) suas letras incríveis. Era leitor de poesia, principalmente Castro Alves e Junqueira Freire, segundo depoimento dele mesmo. Pois outro amigo meu repassou por descuido um e-mail bastante maldoso. Antes da belíssima letra de O mundo é um moinho (Ainda é cedo amor/ Mal começaste a conhecer a vida...), em fonte destacada e sublinhada, vinha o seguinte brinco de erudição e amor ao povo brasileiro: "Cartola fez esta música quando soube que sua filha era prostituta".
Pra começar, Cartola não gerou filhos nem filhas. E essa história de ver prostitutas onde elas não existem, somente diz da psiquê de quem inventa essas lorotas. É claro que o amigo repassador da mensagem, já esclarecido, não tem nada a ver com isso, e deve já ter esclarecido a outros.
Mas vamos aos fatos. Cartola (Angenor de Oliveira) e Deolinda, sua primeira esposa, adotaram Creusa Francisca dos Santos, filha de Rosa do Espírito Santo e Agenor Francisco dos Santos. Seus pais eram amigos de Cartola e de Deolinda, sendo esta sua madrinha de batismo. Quando Rosa faleceu em 1932, Creusa tinha apenas cinco anos de idade, e Deolinda e Cartola, juntos há sete anos nesta época, resolveram adotar a criança. Creusa tornou-se cantora (e não prostituta!), participando da gravação do LP de Cartola editado pela Discos Marcus Pereira em 1976, no qual está O mundo é um moinho. Ela canta as músicas Ensaboa Mulata e Sala de Recepção, é só ouvir. Creusa faleceu em data que não consegui apurar com precisão.
Desmentindo a maledicência, o relato da filha mais velha de Creusa, Irinéa dos Santos, é claro. Cartola, homem vivido e experiente nos assuntos do amor e do mundo, compôs essa música refletindo sobre o que reservaria a vida para Creusa, então uma menina de 16 anos que passava a se interessar pelos rapazes. Como, aliás, também fez o poeta e abolicionista negro Cruz e Sousa no livro Faróis, antevendo as dificuldades do rebento na sociedade da época, em Meu Filho: "Minh’alma se debate e vai gemendo aflita/ No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:/ Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,/ Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!"

O MUNDO É UM MOINHO
(Cartola)
Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem amor
Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés