27 fevereiro 2007

DESCANSO

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acocado na cascata de cascalho,
o talhador de paralelepípedos,
quieto como um cigarro.

de pedra as vestes
e de pó a pele escura,
quase não se o vê
entregue à paisagem.

acostumado ao plique-plique,
o vale de cipós emudece.

como o rival de dinamite,

o silêncio é insuportável.

senha para o recomeço.



Sidnei Schneider
do livro Quichiligangues

RECOMEÇO

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talho a talho vem bulindo
com o osso do minério.

corta em linha o ferro
da pedra, aplacando nos dedos
a carne da montanha.

desesperança não o adoece.

tem paciência de décadas
para encaixar o que produz
no quebra-cabeças da rua.

a montanha é a eternidade.


Sidnei Schneider
do livro Quichiligangues

26 fevereiro 2007

GONÇALO M. TAVARES

Apesar do marketing da editora Bertrand apresentá-lo como um escritor português - seria uma tendência internacional? - o poeta nasceu em Angola, 1970. A obra de Gonçalo é uma das novidades - verdadeiras novidades, por favor - mais instigantes da poesia de língua portuguesa dos últimos tempos.

OS BRAÇOS

Como viver? Não há outra pergunta séria.
Um velho com o braço direito partido
.folheia o jornal com a mão esquerda.
Penso: assim seria mais fácil.
.........O corpo a decidir por nós.
Olho para mim: os dois braços intactos.
.........Que fazer?


O ESCRITOR

É um escritor ou então a mulher partiu com outro,
e o corpo não recuperou a vontade
de se preocupar com a roupa.
Espontâneo, vê-se; tudo o que traz vestido
apareceu-lhe à frente como numa colisão.
No entanto é discreto.
Tem a idade em que já não se desejam os olhares dos outros.
Branco, o cabelo transmite paz e
uma pequena desistência.
Tem cachimbo, óculos,
na mesa revistas francesas sobre a alma e os laboratórios que a estudam;
pega numa folha e começa a escrever.
Tem ar sóbrio, o corpo não dança,
vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros.
Escreve; passa a mão sobre a orelha.
É um escritor, em definitivo.
A luta não é com a solidão, vê-se que sabe usá-la,
percebe a sua natureza.


AS CANÇÕES

O coração necessita de afinação, como os rádios.
Por vezes, em simultâneo, executamos duas canções,
e uma perturba a outra,
e não é bom para os ouvidos.
Mas qual o botão que afina o coração?
Não é assim tão fácil.


Até aqui, poemas do livro 1, Observações.


CHÃO


Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.

Do livro 5, Homenagem.


UM DENTISTA

Conheci num poema de Auden
um dentista reformado que se pôs a pintar montanhas.
Pintou trinta e três montanhas como os pintores de parede
pintam trinta e três paredes. Depois parou, limpou o suor da
testa, pediu um copo de vinho e uma mulher, e despiu-se, embriagado,
fazendo sexo como um dentista
e não como um pintor de montanhas.
E se pensas que uma e outra forma de tocar numa mulher
são idênticas, então deves ler mais poesia.

Do livro 6, Explicações científicas e outros poemas.


A FORÇA

Nunca vi anjos nem aprendi orações
Como aprendi versos, mas desde cedo uma
Certa conspiração calma recolhida na parte
De trás da existência me foi dando
Conselhos, monocórdicos, pontuais;
Uma força constante que
Afastada dos dias e do seu ruído próprio
Me acompanhou. Nada religioso, nenhum Deus,
Nenhum temor, nenhuma adoração,
Chamemos à coisa: disciplina. E assim está bem.
O mundo avança e acontecem coisas,
E o meu corpo recolhe-se e faz o que tem a fazer.


AS FRASES

Do meu pai recebi desde menino uma imprudente
Forma de receber as frases que nos dizem: não esperar
Por elas numa cadeira, mas saltar em redor, eis
Um método que não era método porque era instinto:
Ouvir a frase de todos os pontos de vista,
Como se a linguagem depois de dita
Fosse uma matéria que permanecesse no ar,
E nós, animais representantes do diabo, à sua volta,
Tornássemos visível o que ela queria esconder:
A frase tentava exibir o rosto bem maquilado
E nós apontávamos a sua roupa íntima,
As borbulhas deselegantes, a sua fealdade e a sua falsidade.

Do livro 7, Autobiografia.



Ninguém esta preparado para o massacre. A criança cresce porque lhe prometeram calma. O olho abre-se porque lhe prometeram beleza.


A beleza é aquilo que é amado. A admiração e o assombro atiram pólen às coisas. O dia seguinte só surge porque algo do anterior não foi compreendido.


Os hábitos são uma fixação no mundo. As ações não se tornam roucas como a voz, mas perdem comprimento, largura e altura. Um hábito é uma coisa que já desapareceu.
Diante do inimigo mais forte sê doce: toda batalha é um negócio que não inclui música, mas sons disformes. Não se salva um barco não o construindo.


Do livro 8, Livro das investigações claras.


TAVARES, Gonçalo M. Um. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.

25 fevereiro 2007

DO TEMPO

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não
nos vemos
dois três
dias

mas sempre
dizemos
ontem

os dias
em que não
nos vemos

não contam?

16 fevereiro 2007

VLADIMIR MAIAKÓVSKI

Em 1993, publiquei o artigo MAIAKÓVSKI 100 ANOS: A FELICIDADE GUERREIRA e traduzi várias partes do poema-livro Vladimir Ilich Lênin, inédito entre nós. Apenas duas foram publicados em jornal, ilustrando um texto de Emílio Carrera Guerra sobre a vida do poeta. O conjunto traduzido veio a público numa edição artesanal, de circulação bastante limitada. Esse ano, vou retomar o trabalho.
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Se hoje alguns temas chegam a ser considerados proibitivos à poesia - como os da esfera sócio-econômica e política - por um certo pensamento conservador travestido de moderno que reedita o equivalente às antigas proibições sexuais, o poeta russo tem algo de atual a dizer, derrubando muros e cerquinhas. Rejeita, igualmente, o que não atingiu o artístico.
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Palavras que flutuam no ar:
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Palavras que flutuam no ar:fumaça que dissipa logo.
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Nada se pode extrair
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Nada se pode extrairdessas cascas de ovo.
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Nem cabeça nem mãos
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Nem cabeça nem mãossentirão nada novo.
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...
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Sei que
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Sei quesorrirá
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Sei que sorrirácom amargura o lírico,
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precipitado
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precipitadoempunhará
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precipitado empunharáa vara o crítico:
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- E a alma, onde está?
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- E a alma, onde está?Isso é pura retórica, linear!
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E a poesia, cadê?
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E a poesia, cadê?Panfletário demais!
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...
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Eu escreverei
.
Eu escrevereisobre tudo,
.
.Eu escreverei sobre tudo,sem preconceito,
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mas agora
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mas agoranão é hora
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mas agora não é horade palavrinhas-confeito.
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A ti
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A tite dou
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A ti te douatacante classe obreira
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toda minha força sonante
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toda minha força sonantede poeta.

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VLADIMIR MAIAKÓVSKI, 1893-1930.

Tradução Sidnei Schneider, 1993.


14 fevereiro 2007

VISÕES PARCIAIS

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o olho tem cheiro
feminil, penetrado
por imagens, deita
gotas de silêncio
e dor. abarca o
entorno de só vez,
porque não se crê.
quanto mais enxerga
melhor se engendra,
recorta-se do lodo
para existir per si.


o olho é barco,
balança no berço
do horizonte, colhe
peixes, algas, detritos,
e deles se engorda.
só quando esfrega
os cílios no sal,
alcança-lhe o sol
o pai de dentro.
viu crescer a terra,
mas é filho do mar.


Sidnei Schneider, 2007

07 fevereiro 2007

ÁGUA BOA

O poeta e jornalista Marcus Minuzzi, que conheci faz pouco e já se tornou um amigo, inventariou dentro de si uma dicção ovariana e recrutou a luz plena do abacate – símbolo macio de um modo de sentir, para com ele encher de poesia o circundante sob a ótica do feminino. É uma escritura com suavidade de musgo, prolífica e vertical como o capim do chão, que esparze os odores do enlace amoroso fazendo do sexo o lugar do sagrado, campo de pouso da ave que voa. Um exemplo? Diante da photoshopista apropriação da beleza epitelial das madonas da publicidade e do pornoegótico e onipresente fetiche visual da nossa época, Marcus atira a sua lança em outro terreno, mais fértil e vivo: O nu destoa da beleza feminina. A mulher vence batalhas uterinamente. Seu sol é o sangue que menstrua, severo e doce. Assim termina Os Biscateiros Alfaiates, um poema que vinha enaltecendo o nu por outra fresta: Eu havia sonhado com índias de peito adulto. A nudez índia me lancinou. Leva-me ao leito rumoroso do teu rio. E que iniciava rejeitando a própria rejeição à sua fala: Li certa vez que não me querem. Obrigado, pois mais lírico é não querer, e chorar com isso. Em A Garçonete, o eu lírico do poeta se dirige a uma personagem do cotidiano, musa trabalhadeira desprovida de Olimpo, num registro símile ao efetivado por Baudelaire quando cruza com uma desconhecida nas ruas de Paris em A Uma Passante. A comparação não pretende destilar uma influência, descabida nesse caso, apenas recuperar o conceito de que cada novo poeta ou poema cria os seus precursores. Alimentei meus sonhos, Te olhando. A senhora não há de ser descoberta Pela minha esposa, Nem eu pelo seu marido. Namoramos em segredo. Tirar sua roupa Não está nos meus planos. És a flor das não-comidas. A senhora digna, dura e de saias, A quem somente amamos. O café esfria, atendente, Mas permaneço a contemplar-te. (A Garçonete – trecho) A luz do abacate, expressão que dá nome ao seu blog (ver abaixo) e ressurge em diferentes abóbadas poéticas, parece ressignificar-se em O Poema do Peito, através do verso A luz da falha. Minha leitura pessoal dirige-me ao poema A Falta que Ama, de Carlos Drummond de Andrade, e ao modelo psicanalítico de Jacques Lacan que dá conta de uma falta original jamais suprida por completo, ainda que sempre estejamos em busca de abastecê-la: Aprende bem isso. Te lava nesse ribeiro. Bebe-os, os peitos. Toma-os em mãos. Segura-os firmes. Como o par do que se perdeu. Ouve bem o teu pai: Não terás coragem de largá-los, não. São teus. Última instância da posse e do desejo. Calor do mar de dentro, Onde se aninha um pássaro. Maior desejo que isso, Só o de ser terra, Confundir-se com ela, E renascer sob o signo do abacate. São teus: recuperados. Há que se guardá-los num cofre. Resgatá-los na certidão de nascimento, Na digital da identidade. É o que acontece, Quando O homem suga os seios da sua Mulher. (O Poema do Peito – trechos) Em Os Ratos, poema que parece ter algum eco criativo na prenhez da Ode aos Ratos, canção de Edu Lobo e Chico Buarque (CDs Cambaio, 2001 e Carioca, 2006), a escavação inicia de um modo e termina de outro. Antes do que mera busca de uma escrita oxímora (só para usar uma palavrinha difícil num texto fácil), a contradição é a própria raiz do significado: De pêlos E pés, Os ratos E suas patas. (...) O amor da bela Faz-me crer Na Minha Própria Pureza. (Os Ratos – trechos) Talvez seja preciso dizer alguma coisa sobre a aparência espichada de grande parte dos poemas, compridos como eles só, formados por versos de apenas uma, duas ou três palavras. Marcus parece pretender com isso uma leitura pausada, musicalmente lenta, saboreante. Adequada às páginas da web, impacientes para tudo que pareça longo demais ou discursivo de menos. Em Aos Colegas do Ciberespaço, ele tematiza as visitas eletrônicas inesperadas, as naus desconhecidas que cruzam o mar das nossas fenestras virtuais: blogs, revistas, sites, etc. E com que propriedade: Cinco Minutos Com Você. Pôr O dedo. (...) Adorei Não Te conhecer, Em Nenhum Lugar. (...) Ser Água Boa É meu Destino. (Aos Colegas do Ciberepaço – trechos) A poesia de Marcus tem por vezes um acento lírico, entendido como o do poeta que busca dentro do íntimo, no seu mais particular e fundo, algo tão pessoal e humano que paradoxalmente se projeta para encontrar o sentir do outro, o mundo externo, os leitores. Esse tipo de procedimento, referenciado pelas discussões de Adorno em torno da Lírica e defendido pela metapoesia praticada por Mário Quintana, lírico por excelência, não é exatamente o costume no momento atual, ainda que perpasse o que absorvemos da tradição lusitana. É o que acontece em Pedido de Adoção, no qual a fala lírica se dirige de modo quase patético a um personagem real da cidade, o poeta e brincante Mário Pirata: Quero Ser Teu Filho. Já Pensaste Em Deixar Descendência? (Pedido de Adoção – trecho) Umas poucas vezes, Marcus procura o épico, como em O Povo Brasileiro: As estações são verdadeiras. Carregam-nos. O Brasil é o próprio barco. Um dia fomos esta nau perdida no universo. Acharam-nos. O povo concreto quer ser brasileiro. E ser brasileiro, ainda, é um sonho. A nau do povo é certeira. O povo é nobre. E vai, no futuro, envergar um cetro e uma coroa. (O Povo Brasileiro – trechos) Marcus também aprecia trocar as palavras de lugar, expediente que marca a poética de um Manoel de Barros, por exemplo. Para não alongar demais esse texto, cito dois versos já reproduzidos no seu devido contexto. É o caso do verbo escolhido para A nudez índia me lancinou, ou o do substantivo que acondicionará os seios recuperados pelo menino-homem: Há que se guardá-los num cofre. Parafraseando o próprio poeta de Ordenhal nº 1, pode-se dizer que quando ele colore um ovo e o dispõe no mundo, o mundo serena. Texto: Sidnei Schneider, 07 Fev. 2007 Ilustração: Cândido Portinari. Blogue do Marcus Minuzzi: http://www.aluzdoabacate.blogspot.com/

02 fevereiro 2007

UMA DÚZIA DE TIGRES

o
Doze traduções diferentes de The Tyger, o mais conhecido poema de William Blake, foram publicados em sete línguas na Espanha. O português apresenta o maior número de versões, somando as de brasileiros e portugueses. Para ler as de Augusto de Campos, Jorge Vilhena Mesquita, Vasco Graça Moura, Jorge de Sena, José Paulo Paes e a minha, clique aqui: The Tyger.

01 fevereiro 2007

DABO SIA Ó, AO TIN

Em língua de poeta, meu mais novo amigo, Marcus Minuzzi, reaquece o livro Plano de Navegação: "Que dizer a um autor? A crítica convencional não me convence. Acho que dois poetas, ao se depararem um com o outro, precisam saudar-se como índios que respeitam e temem a diferença, por isso a dominam." Veja o texto completo.