01 novembro 2010

POETA CONVIDADO: PEDRO CARRANO

Conheci o Pedro no Paraná, por ocasião do lançamento do meu livro Plano de Navegação na Feira do Poeta da Fundação Cultural de Curitiba, em 2000. Era estudante de jornalismo, convidado da escritora Bárbara Lia, e tinha um livro de poemas em projeto, o Bomba-relógio. Desde então, trocamos textos e livros, veio a Porto Alegre por ocasião do Fórum Social Mundial, e subiu a América Latina até o México, em viagem muito mais longa e dilatada no tempo do que as que fiz. Há mais dados sobre ele no final dessa postagem. Os poemas e os textos em prosa a seguir são da escolha do próprio Pedro.

Do livro de 60 sonetos Bomba-relógio:

55. “o carbono acorda diamante”, Helena Kolody

(mijo de sol, sobe lento a 13 de Maio)
o homem que cata lixo, roupa de cata-vento
carrega o carrinho como uma cruz, um pálio
entre restos e caixas, calado, lá dentro
um menino viaja, com olhar assustado
junto à bandeira do time, o cão e o rádio
olha seu pai: braços duros como de plástico
e o carrinho vai subindo, lento e pesado
mas a roda de arame gasto não suporta
o carrinho desmonta, e o lixo rua abaixo
penetra em tudo que encontra, nas caras fechadas
– dissipou-se pela rua o lixo em enxurrada –
no olhar de quem via, não durou um instante
e voltou a ser carbono o diamante


Do livro Dissidentes:

Para bertold brecht

por que você escolheu a selva das cidades?
duvidando do que se pensava natural
doeu nos seus olhos saber que um animal
como o homem, sobrevive na luta de classes?


Para eduardo galeano

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos”

as últimas braçadas
quase chegando ao cais
e à medida que chegamos
o horizonte se refaz


Para vladimir maiakovski

“nas calçadas pisadas de minha alma”

não há fim,
não há meio-fio
que encerre
as fronteiras,
que mapeie
o território
do grande acontecimento:
a fusão entre o eu,
os outros
e o eu por mim mesmo


Para leminski

noites vazias disfarçadas com risos,
o rigor da cerveja
esparrama a vida ao léu
os bêbados não incomodam
– narcisos –
desfilam suas misérias como um troféu


Para ana c. cesar

morrem as folhas.
pra onde vai seu cheiro?


Para oswald de andrade

aqui nesta capital brasileira pouco se reza
mas vamos fazer um esforço
pra que no feriado que se aproxima
deus nos abençoe trazendo o sol
(e a justa distribuição de terras também).


emily dickinson

meus ombros são frágeis galhos –
suportam apenas os pássaros


JULIA

Agora Julia não tem mais problemas pra viver o tédio do deserto cercado de sal onde está cravada a cidade de Uyuni.

Quando alguém sente sua falta, sabe onde achá-la: a menina fica das seis da tarde até de madrugada na única casa de internet da cidade, na única rua urbanizada, centro do vilarejo.

Conversando no msn, sem querer a jovem descobriu que o castelhano a leva mais longe que o quíchua ensinado pelos pais. Às vezes Julia fecha mais cedo a barraca do mercado onde trabalha sozinha, só pra entrar no chat. Não sente a mínima falta das moscas se aglomerando sobre as frutas que Julia tem de vender.

Mas Julia também não imagina que agora está perdendo, na única e velha praça de Uyuni, o cheiro da pele dos meninos que ainda se juntam por ali.

Uyuni, Bolívia. Março de 2005.


CARMEN

Eu viajava na caminhonete do lado de um casal que desceria no mesmo trecho da estrada que eu. Os dois sentavam-se cada qual de um lado da caçamba e, mesmo aos trancos e sacolejos, em meio à poeira especialmente grossa, eles não paravam de trocar olhares nas duras horas de caminho. Eram olhares com um quê de cúmplices, mas também infantis e, por que não, ousados para essas pradarias onde a reserva e o pudor são a regra. Difícil compor a cena, até porque eu os chamei de infantis, mas devo informar que cada um trazia dois filhos no colo, e a menina, ou melhor, a mãe, não parecia ter mais de 16 anos.

Depois descobri que na comunidade de Carmen o amor é lúdico, um jogo entre dois. Quando os homens estão apaixonados eles vão até a nascente do rio, acima de onde a sua amada lava a roupa e se banha. Daí eles lançam correnteza abaixo uma caixa com um caracol dentro, como que avisando: “Fique atenta, porque há alguém no povoado apaixonado por ti”. Cabe à mulher descobrir quem é o comandante da pequena nau e, depois, fazer o mesmo, como resposta.

Me explicaram que o costume não é algo rígido e é possível declarar-se a alguém de outros jeitos. Esse seria apenas um dos muitos jogos de amor em Carmen. Tanto melhor, porque, na dureza de qualquer caminho, poucas vezes a correnteza, o vento e o acaso capricharam tanto a ponto de levar a caixa e o caracol direto ao seu destino.

Ocosingo. Sudeste mexicano, outubro de 2005.


PEDRO CARRANO nasceu na capital paulista, em 1980. Em Curitiba, onde vive desde criança, foi repórter de jornal de bairro e enfrentou até os apuros da mídia corporativa. Desde 2006, integra a redação do jornal Brasil de Fato. Ao longo de 2005, atravessou a América Latina, quando cobriu a queda dos presidentes Carlos Mesa (Bolívia) e Lucio Gutiérrez (Equador), além do início da Outra Campanha do exército zapatista. Acompanhou também, em 2008, a vitória eleitoral de Fernando Lugo no Paraguai.

Viveu no México e na América Central, onde desenvolveu cursos de comunicação popular em comunidades indígenas maias. Reproduziu o curso em áreas de ocupação em Curitiba.

Em 2006, voltou ao sudeste mexicano como correspondente, durante a luta da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca, experiência que deve ser publicada no livro Antes da Tempestade (no prelo). Da perspectiva de escritor, sempre perseguiu neste período o que o amigo Paulo Venturelli recomendava: acumular experiências de vida.

Publicou textos nos jornais culturais Rascunho, Quixote, Panfleto (PR) e Fenestra (RS). Criou e abandonou pelo menos uns quatro blogs. Publicou contos no Jornal do Estado, agora organizados no livro Três vértebras e um primeiro testamento, que será publicado em breve. Tem trabalhos em poesia e teatro. Muitas coisas nas gavetas, algumas delas gritando para ter um destino. Outros vários panfletos perdidos aí pelo mundo.

É militante político e ajuda na construção de movimentos sociais como a Assembleia Popular. Casado com Manoela, gosta de pintura e tem uma filha de um ano, chamada Clara.

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2 Comments:

Blogger Sidnei Schneider disse...

Foto da poeta Bárbara Lia

5/11/10 19:37  
Blogger carmen silvia presotto disse...

Muito bom conhecer este poeta, como faço para ter o seu livro, Sidnei?

Um beijo

15/11/10 16:32  

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