29 dezembro 2005

DEREK WALCOTT


UM AMOR DEPOIS DE OUTRO


Virá o tempo
em que, exultante,
hás de saudar-te ao chegar
à tua própria porta, em teu espelho,
e cada um sorrirá à saudação do outro,

e dirás, senta aqui. Come.
Amarás novamente o estranho que tu eras.
Oferece vinho. Dá pão. E tua cabeça de volta
a si mesma, ao estranho que toda vida

te amou, que, por causa de outrem,
desconsideras, e que te conhece de cor.
Retira as cartas de amor da estante,

as fotografias, as anotações desesperadas,
descasca tua imagem do espelho.
Senta-te. Refestela-te com tua vida.


Sidnei Schneider, 2003,
retradução da versão de Nelson Ascher.




LOVE AFTER LOVE


The time will come
when, with elation,
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror,
and each will smile at the after’s welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your head
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ingnore
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desesperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.


DEREK WALCOTT, Ilha de Santa Lúcia,

poeta negro, Prêmio Nobel de Literatura.

EMILY DICKINSON


Morri pela beleza e estava pouco
Ajustada ao túmulo,
Quando alguém que morrera pela verdade
Foi alojado ao meu lado.

Perguntou-me, cuidadoso, por que faltei.
“Pela beleza”, respondi.
“E eu pela verdade – são uma coisa só”,
Disse ele, “somos irmãos”.

E assim, como familiares que se reúnem à noite,
Conversamos de um jazigo ao outro,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu nossos nomes.


Trad. Sidnei Schneider, 1999



I died for beauty, but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room.

He questioned softly why I failed?
“For beauty”, I replied.
“And I for truth, - the two are one;
We brethren are”, he said.

And so, as kinsmen met at night,
We talked between the rooms,
Until the moss had reached our lips,
And covered up our names.


Emily Dickinson, EUA (1830-1886)

19 dezembro 2005

VALEU, PAULO HECKER


O poeta e crítico gaúcho faleceu no último dia 12, em Porto Alegre, na sua casa, aos 79 anos. Para ele, no jogo da vida, se trata de fazer o que se pode no mundo, o que principia pelos outros, para acabar de ser quem se é.


O Paulo Hecker era um cara do bem. Digo isso pensando em todos aqueles que, ao contrário, se vendem para os outros como pessoas legais, que muitas vezes se acham pessoas legais, mas estão contra o ritmo do mundo, da vida, do amor, da história.

Era poeta, contista, dramaturgo, tradutor, novelista e amigo. Começou como crítico literário, estabelecendo-se como um dos mais destacados pela independência e seriedade, atuando continuamente em vários jornais, no Rio Grande do Sul e fora dele, tornando-se referência nacional por sua atuação n’ O Estado de São Paulo. Nos últimos vinte anos foi se concentrando cada vez mais na poesia, gênero essencial, do qual historicamente derivaram todos os outros, inclusive o discurso lógico, escancarado desvio de linguagem do que era o estabelecido. E Hecker olhava para tudo, propiciando, nos momentos mais felizes, aquela espécie de “dança do intelecto” de que falava Ezra Pound ao se referir à logopéia.

Era um crítico atento, diante de novos e consagrados. Capaz de descobrir, por exemplo, Fernando Pessoa na década de 40, remando contra a opinião de amigos como os poetas Mário Quintana e Paulo Corrêa Lopes, que o achavam sem ritmo. Capaz de ver declínio na obra de José Saramago quando este acabava de ganhar o Nobel – hoje se aprende isso na universidade, mas naquele momento não era fácil dizê-lo. Isso para ficar em dois casos. Também era crítico de teatro, cinema, dança, artes plásticas, televisão, e o que mais pintasse pela frente, fosse bom ou ruim. O que degustasse não ficava sem algumas linhas.

Para o Fenestra, jornal editado por Jorge Fróes e Cézar Dias, ao qual na época me integrei, Hecker deixou um poema que é uma belezura só, hoje presente no livro Nem tudo é Poesia:


OS FILHOS CRESCEM

Os filhos crescem.
Aquela coisa mais querida do mundo
de repente tem opinião,
derrama por querer a sopa toda,
não para de chorar de pura raiva.

Os filhos crescem.
Querem entrar no grupo que os não quer,
pedem briga, dão gritos pela rua
a clamar eu sou eu
por não saberem quem são.

Os filhos crescem
e ficam diante de si como num ringue.
Vão se bater até beijar a lona?
Se duvidarem, vão.

Os filhos crescem.
Desenha-se a existência em cada um,
os pais ficam olhando, que fazer?
E mesmo quando acertam, que é que muda?

Os filhos crescem
e não adianta se querer dar tudo,
nem a alma.
Desejam outras almas,
são outros.

Os filhos crescem.
Sem ler nossos romances para eles,
se metem em capítulos inéditos.
Já não são nós, se sentem vitoriosos.
E continuamos eles...

Paulo era um ledor – o termo é dele. As dezenas de milhares de livros da sua biblioteca que o digam: “Permanecem quietos, de pé,/ apesar da umidade, apesar dos insetos,/ apesar das ausências do leitor/ para ir levando a vida,/ esse hiato ante os quarenta mil/ que conhecem o real e o possível,/ vivem o tempo até a eternidade./ Quando eu morrer, não morrerão.” Mas era um ledor no mundo. “Porque nunca botaste a literatura na frente da vida, embora tenhas passado a vida lendo”, na feliz observação do poeta Celso Gutfreid.

Não era difícil encontrar o Paulo Hecker pela cidade. Sempre gostei de ver poetas e escritores no mundo: nas ruas, no cinema, na vida. Não faz muito o vi num show do projeto Unimúsica, no Salão de Atos da UFRGS: ali, aquele cidadão de quase 80 anos, curtindo a boa música instrumental brasileira no meio de uma platéia bem mais jovem. Dava uma alegria só de percebê-lo, de saber que se podia envelhecer sem virar careta ou ranzinza, sem perder a conexão com o circundante. Naquele dia ele me lembrou o Barbosa Lima Sobrinho, intelectual atuante até os 105 anos, caso comprovado de alguém sem motivo para morrer até que o inevitável aconteça. Faz pouco, assistimos ao mesmo filme na Casa de Cultura Mário Quintana. E no mesmo local, há menos tempo ainda, no final da sessão eu quis ir ao pequeno banheiro da sala Norberto Lubisco mas estava ocupado, até que dele saiu o Paulo Hecker. Lance de dados gratuito com que a vida nos oferece a última visão de um poeta.


“HECKER E EU”

Tive, pessoalmente, pouco contato com ele, mais por um jeito meu de ser do que dele. Lembro do dia em que fui lhe entregar minha tradução do José Martí, meu primeiro livro, quando me falou da sua tradução de A rosa branca (poema sem título originalmente, 39ª seção de Versos Sencillos do poeta cubano). A partir do volume que lhe dei, traduziu os versos da música Guantanamera, tradução que, por falta de espaço, acabou não entrando no meu Versos Singelos, ficando apenas a letra original no apêndice e uma nota a indicar quais estrofes do conjunto traduzido a compunham. As poucas linhas com que depois apresentou Martí e as duas traduções no livro Só Poema Bom revelam sua origem, até no equívoco de chamar o músico Pete Seeger de Peter. É pouco o contato, modestamente é meu recuerdo, e é quase o que desejo na relação com escritores muito conhecidos.

Um outro ponto de encontro é que ambos fizemos nossa tradução de The tyger, do William Blake. Eu sempre pensava em mostrar pra ele, mas nunca o fiz e agora é tarde. Nesse instante, agora mesmo ao escrever o de cima, lembrei que ele recebia regularmente o Rascunho, jornal literário do Paraná, e talvez tenha lido nele, em julho, os poemas do Blake por mim traduzidos, entre eles o rugido selvagem do meu Tigre.


CORAGEM INTELECTUAL

Outra faceta inseparável do todo em Hecker é sua coragem. Certa vez, para um jornalista, explicitou de modo muito simples a sua independência e verdade no exercício da crítica: “Eu acho o que achei”. Defendia o que pensava, via nisso um grande bem, doesse a quem doesse, fosse amigo, cidadão famoso, dono de jornal, ou adepto de velha opinião dominante travestida de novidade. Quanto a isso, o que mais me impressionou nele foi sua opinião sobre José Stálin, absolutamente contrária à corrente dominante, isso vindo de alguém que não era nem militante político nem comunista de carteirinha: “A lição de Stálin já mudou o mundo para melhor”, escreveu num primeiro momento. Inquirido por Gilberto Wallace, na Folha de Letras de dezembro de 2000, sobre o que teria a acrescentar a essa confessada admiração, respondeu: “Que é verdade. A mídia americanizante faz dele um monstro. Esquecem que é um escritor que instruiu para o bem gerações com seus livros e que não há modo de, escrevendo, alguém passar pelo que não é, já que escrever revela o autor para si mesmo. Esquecem que foi quem começou a ganhar a guerra e assim se pode dizer quem a ganhou, tendo comandado todo o esforço nacional bélico como as operações no front. Esquecem seu triunfo diplomático no após-guerra, nada menos que sobre Churchill e Roosevelt. Esquecem que sem ele a Revolução não teria ido adiante e ainda que fez, em pouco tempo, da pobre Rússia, o segundo país no mundo. Não há que tirar o chapéu? A quem persista em dúvida, recomendo a biografia de Isaac Deutscher, também publicada entre nós. O autor, trotskista, parte de um ajuste de contas com Stálin e, depois de oitocentas páginas de pesquisas em arquivos, jornais, documentos, vê-se obrigado a reconhecer tratar-se de um grande homem.” Contestar a isso, usando, para tanto, as referências quase monocórdicas que recebemos sobre o tema parece fácil e de bom tom. Parece. Aí é que está a grandiosidade de Hecker. Preguiça intelectual nunca levou ninguém ao paraíso. Nem perto.



FUTEBOL & POESIA

Uma vez ele enviou um bilhete, agora publicado na imprensa pelo destinatário Celso Gutfreind (Zero Hora, 17/12/2005), onde se pode ler muita coisa para além do futebol, verdadeira aula de filosofia “Tua carona foi razoável em termos de acolhida e velocidade, especialmente nas curvas. Poderia ser melhor se olhasses menos para o lado esquerdo e revisses teu conceito sobre o Marinho (zagueiro do Grêmio). Zaga é conjunto, é grupo, e teu ponto de vista está fora do todo. Assinado PHF.”
Estou viajando demais num bilhete? Então vejamos esse texto, O que é futebol, também de Nem tudo é Poesia:

O QUE É FUTEBOL

Brincadeira tem hora, vinte e dois homens correndo atrás de uma bola! – zombam os leigos. Não vejo graça, só dá homem – dizem as mulheres. Homossexualismo latente, sentenciam os freudianos a ver sexo em tudo. E até Jorge Luis Borges, que sabia das coisas, se indignava com a importância dada ao futebol na Argentina, achava frivolidade demais.

Não acho, não é. Ele empolga o mundo inteiro, deve haver uma razão para isso. Afinal, o que é o futebol?

A sério, nas competições importantes, são onze homens dando tudo para vencer outros onze dando tudo para vencer. Nele se trata de fazer o que se pode no mundo, que principia pelos outros, para se acabar de ser quem é. Uma tentativa entre outras, e das mais completas, de cumprir a própria humanidade. E não só a dos que estão em campo, também a das torcidas inumeráveis que com eles se identificam. Na aparente simplicidade, o futebol atualiza o drama humano de enfrentar, buscar superar o adverso até a redenção de uma vitória, ainda que passageira como tudo na terra.

NUNCA ME SENTI TÃO DO BRASIL

O Hecker também era capaz de escrever umas coisas simples, injustamente desvalorizadas por alguns, que acabavam soando como uma salutar e instigante provocação se o ambiente fosse aquele superprovinciano tentando a todo custo se passar por cosmopolita, embora o intento dele fosse apenas singelo: expressar um sentimento. Querem ver?

SER BRASIL

Jovens, escurinhos, vitoriosos
a tevê dá
cada jogador do pré-olímpico
cantando o hino nacional.
Jovens, escurinhos, vitoriosos
cantando.
Nunca me senti tão do Brasil.

Não sei quanto a vocês, meus amigos, mas de minha parte quero envelhecer como o Paulo Hecker Filho.

Sidnei Schneider, Dez. 2005

11 dezembro 2005

HEITOR SALDANHA

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Poeta dos bons, nasceu em Cruz Alta, 1910, e morreu em Porto Alegre, 1986. Morava na Furna 111, na Rua Sarmento Leite. Eu o conheci nos altos do Mercado Público, ao redor do bar-restaurante que ficava na entrada da FRACAB (Federação Rio-grandense das Associações Comunitárias e Amigos de Bairro), à época em que o bem-humorado Washington Ayres era o presidente, em 1982. Luis Fernando Prestes foi quem o apresentou a mim, sorrindo satisfeito dentre a barba asiática, como a revelar as altas qualidades do outro com um toque de amistoso deboche , bem do seu feitio: "É, ele é poeta..." Ao que Dileta, secretária da entidade e líder comunitária da então Vila do Respeito, orgulhosa completou : "Ele foi viver com os mineiros de Arroio dos Ratos..." Eu era jovem, não tinha dimensão de quem poderia ser aquele personagem, mas gostei do aperto forte e digno da sua mão. Era um tipo sobranceiro e curioso, óculos de aro preto recortados sobre a cara.
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Sobranceiro é uma palavra que combina bem com ele, de vastas sobrancelhas, rosto vincado pelas galerias do tempo. "Sempre me fascinou a vida dos homens que trabalhavam nas minas de carvão". No início dos anos 50 decidiu trabalhar numa delas, na região de São Jerônimo. "Todos os dias eu decia ao fundo do poço e via como era a vida de um mineiro. Trabalhei ali uns dois anos e meio e encontrei o tema das Galerias Escuras (1954). Foi uma forma de sair em busca da poesia, embora não seja necessário que para se escrever sobre alguma coisa se participe diretamente dela". Mais tarde, os mineiros souberam do livro e dos poemas e deram a Saldanha uma lanterna de mina de presente, a luz que iluminava seus caminhos.
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Em 1958 foi morar no Rio de Janeiro com a contista gaúcha Laura Ferreira, com quem casara um ano antes, e lá permaneceu por doze anos. "Aí a vida foi intensa", comentava. Conheceu Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Clarice Lispector, de quem foi muito amigo, Ferreira Gullar, Helena Jobim, os irmãos Campos, Décio Pignatari. Houve de tudo um pouco nesse tempo: boemia, debates, agitação, poesia. E o nascimento de seu filho, André, tema de um bonito poema escrito anos mais tarde:
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nos parecemos tanto
eu e meu filho
que brigamos sem saber por quê
e nos amamos sem saber por quê
mas ele é jovem e inteli-gente
espero um dia
nos compreendamos sem saber por quê
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Hoje, após essas leituras, uma antiga lanterna de metal exposta na sala da minha casa, daquelas movidas a carbureto, e oriunda da mesma região carbonífera, ganhou em significado. Se antes lembrava o trabalho quase desumano dos mineiros, as gravuras de Danúbio Gonçalves sobre o tema, o romance Germinal de Émile Zola, o trabalho infantil nos versos de William Blake, as minas de Criciuma que visitei, e toda a história do início do capitalismo e do movimento obreiro, agora ganha a contribuição de Heitor Saldanha.
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Muitos anos foram necessários para associar aquele poeta da FRACAB, o Saldanha, como o chamavam, ao autor dos versos que agora leio, admiro e investigo.
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Sidnei Schneider, 2005
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A MORTE DO TOCADOR DE CARRO
O grito estancou o silêncio.
Mas quê!
As comportas são roxas
quando nos sangram as unhas.
Escuta,
escuta que ainda se ouve
vir de longe o carro dele
rolando como um trovão
lá bem no fundo da mina.
Também,
o carvão escuro,
também, galeria escura,
vida escura,
tudo escuro,
como é que um homem há-de?
Como é que um homem não há-de
morrer esmagado ao carro
companheiro há tantos anos?
Escuta,
escuta que ainda se ouve
o subir do carro dele
rolando como um trovão
pela galeria escura.
Rolando como um trovão.
(...)
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A Morte do Tocador de Carro, Heitor Saldanha,
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in FELIX, Moacyr (Org.). Violão de rua II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
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COMPROMISSO A UM MINEIRO TRABALHANDO
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(trechos)
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Não quero e nem permitirei por certo
que enfeitem, desfigurem teu semblante.
...
Há os que vivem cantando para a morte
enamorados de famintos vermes,
e nós cantamos para não morrer,
para que a vida cumpra seus desígnios.
É muito mais alegre, embora trágico,
quando se canta em meio ao combate.
...
Procuro esclarecer nossa linguagem
para que todos possam compreendê-la,
para que façam coro e nos ajudem
todos os que ainda amam sobre a terra
...
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SALDANHA, Heitor. A hora evarista. Porto Alegre: Movimento, 1974.
(reunião dos livros de poesia do autor)
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Heitor Saldanha, Autores Gaúchos, v.2, Instituto Estadual do Livro, 5. ed., Porto Alegre: IEL, 1997.

ONTEM MORREU CLARICE LISPECTOR


Hoje talvez anoiteça
mais cedo ou
amanheça
maiscedo ou
anoitemanheça.
Hoje não é aqui
nem nunca.
Hoje só não pode ser ontem.
Hoje estou no Treviso
com o Edgar Koetz.
Hoje estou na Volunta
com Zina Loreto.
Hoje estou com o Paulo
na cidade-baixa.
Hoje no 111
estou lendo um romance
de uma bela menina.
Hoje a grande amizade
nasceu de um abraço
na Senhor dos Passos.
Hoje estou com o Grupo
num canto do Huberthus.
Hoje estou com o Mário
no Guaraxaim.
Hoje estou de volta
de onde nunca estive.
Hoje estou sarrafo,
muafo, afo.
Hoje cada instante
tem cara de inseto.
Hoje estou numa serra
entre roças e rios,
hoje sou acidente
e morri de repente.
Hoje cruzei o fundo
das águas extremas,
levaram Vicente.
Hoje sou um instante
vivendo no Leme.
Hoje tenho a cabeça
e os pés numa síntese.
Hoje sou o cavalo
dos meus desajustes.
Hoje sou o estrabismo
que encurva as distâncias.
Hoje estou neste bar
entre gente festiva.
Hoje estou nesta mesa
bebendo sozinho.
Hoje é quando não sei
mais notícias de mim.
Hoje tudo é possível.
Ontem, não.
Ontem, não.
Ontem não é possível.
Ontem não é possível.
Clarice morreu.

HEITOR SALDANHA

Poema publicado na Folha da Tarde, de Porto Alegre, em 7 de janeiro de 1978.

O ACIDENTE DE ONTEM

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O menino levava um buquê de flores
e um cartão com endereço.
O bonde matou o menino.
Um horizonte de olhos
reuniu o sofrido instante.
Dentro da manhã de abril
alada em altas bandeiras,
o sangue corria puro, simples,
sobre os trilhos de ferro
sobre as pedras da rua.
Ninguém leu o endereço do cartão.
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HEITOR SALDANHA
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("Um horizonte de olhos/ reuniu o sofrido instante" cria a própria imagem do real, nessa tarefa impossível da poesia de se aproximar do mundo através da palavra, signo totalmente arbitrário.)

BALANÇO

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O mundo carrega nos ombros da gente
e da carga cerrada não nasce uma fonte.
Poeta,
cantas ainda ou caíste gemendo?
Em que transfiguração voltaste
para escrever o poema da formiga?
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HEITOR SALDANHA
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(Formiga, em oposição à cigarra? Formiga, esse ser minúsculo e trabalhador? Formiga, social e coletiva? Poema a favor do canto e em oposição ao mero gemido? Transfiguração nesse sentido, do gemido ao canto? Carregar o peso do mundo e carregar no sentido de ataque de guerra da 2ª Guerra recém finda? Por que pergunto? À excessão da última pergunta, para gerar conflito com a interpretação do respeitável Donaldo Schüler em A Poesia do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Mercado Aberto/IEL, 1987.)

07 dezembro 2005

POETA CONVIDADO: CARLOS BESEN


Como sempre faço, pedi para o poeta Carlos Besen me enviar dois poemas. Ele escolheu os que venceram o concurso Palcohabitasul da 51ª Feira do Livro de Porto Alegre, 2005. Fresquinhos e inéditos, aqui estão:


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RACIONAL, RACIONADO


Em migalhas,

a luz do milho ruída em mim,
indago se estou nu
ou se sou núcleo.

Aos farelos,

ignoro se disseminado
ainda semeio.

Íntegro,

estive amarelo,
mas não estava vencido.

Era tarde,
não me convenci.

Devorei
minha própria lucidez:

em migalhas,

sobro o que nem sequer cogito.



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ROUPA DE ESTAR FORA DE CASA

Ao sair de casa, bagunço o aroma da mala.
Ensino os tecidos a compreender as cicatrizes
do amassado, prometo mostrar a água como ferida,
mas a roupa amarrotada precipita o mar roto, remoto
como areia de praia, que só jaz na praia.

Não me extravio com a cidade de dentro
se abandono roupas demais no armário. Um cheiro
que não partiu comigo me prende ao amargo.
Uma camisa que deixo por causa de uma mancha
reclama a falta que um sinal faz à pele do braço.
Há coisas que são o corpo.

Não me confundo com a cidade de fora
se meu tronco for uma prateleira vazia,
brevidade abortada de um farrapo. Mesmo uma
árvore se veste. Se uma roupa me tem amor,
sinto que meu esqueleto está em cabide errado.
Nu, vou longe sem sair do umbigo.
A nudez é a sua própria casa,

- a cidade, uma maneira de estar vestido.



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CARLOS BESEN, Porto Alegre - RS, 2005.

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