18 dezembro 2008

O BAUDELAIRE DE BRUNO TOLENTINO

No inverno de 2001, eu e Jorge Fróes entrevistamos o poeta Bruno Tolentino (1940-2007), na residência do professor e psicanalista José Luiz Caon. Ele estava em Porto Alegre a convite de um seminário de corte lacaniano intitulado O nome do pai, realizado na Psicologia da UFRGS, no qual abordou o tema O pai apenado, sobre sua experiência numa prisão britânica. Depois de umas boas horas de entrevista, na companhia da fotógrafa Sílvia Prado, cedeu-nos as provas corrigidas do livro O mundo como idéia, para que as copiássemos. Foi comovedor esse empréstimo, uma grande confiança se estabelecia com esse gesto. Isso que já havia distribuído os livros que não tínhamos e um cedê da coleção O escritor por ele mesmo, editado pela Fundação Moreira Salles. Ainda assim, emprestou-nos as provas, e sem ao menos que as pedíssemos. Era um projeto com ilustrações escolhidas pelo poeta, depois abandonado pela editora Globo ao publicar apenas o texto, que percorria toda a história da arte. Não tínhamos nem dinheiro para tantas cópias em folhas tamanho A3. Xerocamos alguns poemas, escolhidos em cima da máquina. Um deles, O espectro, que particularmente me agradava, publiquei com sua anuência ainda inédito, precedido de uma breve apresentação, no jornal Rascunho, em setembro de 2001. A página trazia, numa bela ilustração de Rogério Coelho, um translúcido Baudelaire (acima, na foto de Étienne Carjat), diante de enormes prédios metropolitanos. O título vinha não só do imediato filme de Luis Buñuel, O anjo exterminador, mas de um poema do próprio Tolentino, O anjo anunciador, do livro As horas de Khatarina.


O ESPECTRO ANUNCIADOR

Um fato, carregado de significações, originou o poema O Espectro de Bruno Tolentino. Enquanto lia o filósofo Locke (depois, para afiar a linguagem e o sentido, o poeta escreveria Kant), à beira Tâmisa, percebeu a aproximação de um bêbado, certamente embriagado pelo Vinho dos Trapeiros, com uma manta e a cara “cuspida e escarrada” de Charles Baudelaire, aquele, o da foto famosa. Tal como escrevera o próprio no poema referido, tradução de Ivan Junqueira: “Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/ Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/ Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta”.

Em 1947, Vinicius de Moraes – que freqüentou a Universidade de Oxford, onde Tolentino exerceu a direção da editora de poesia em substituição ao poeta W.H.Auden – produzira Bilhete a Baudelaire, do qual se pode prefigurar o que seria ter diante de si o velho mestre: “Folheando-te, reencontro a rara/ Delícia de me deparar/ Com tua sordidez preclara/ Na velha foto de Carjat”.

A Tolentino, o espectro de Baudelaire, como um pai, apresenta-se com as feições e o sobrenome que legou aos filhos diletos: “Há múmias que uma vez desembrulhadas/ têm escrito na cara o nosso nome”. Outro pater noster, mais antigo, perfura os olhos do leitor na primeira visada: Dante Alighieri, em função da terza rima. William Blake, citado nominalmente, ressurge mais adiante na “rosa/ amada pelo verme e sem poder/ de o recusar”, tema de A Rosa Doente, de Canções da Experiência. O intelecto, “sempre ágil/ ao fazer de um trapézio o seu lugar”, constrói a partir de Machado de Assis (Capítulo 2 de Memórias Póstumas de Brás Cubas): “pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro”.

Não fosse sobre Baudelaire, deixar-se-ia passar a indagação, mas Edgar Alan Poe, a quem tanto deve o simbolista parisiense, não sentiria sua alma próxima, independentemente da intenção do autor, de “e aquilo a se agitar que nem um cume/ de palmeira no ar – e andando, andando/ e desferindo o olhar como um perfume// de gangrena fatal ensarilhando/ o eterno câncer da imaginação/ que desorbita a mente como um bando/ de morcegos agrava a escuridão”? E esta “palmeira no ar”, tão brasileira para quem está em terras britânicas, onde canta um Gonçalves Dias, nada teria com “A palmeira no final da mente”, verso que abre Of Mere Being, de Wallace Stevens, autor do agrado de Tolentino?

Em verdade, o poema é um encontro do poeta com a Poesia, metafórica e formalmente realizado, sob a égide de inúmeros precursores, sintetizados num só. Mas, repleto de sentido, não é um frio cabedal de referências. A aparição serve-lhe para refletir, numa espécie de epistemologia poética, sobre a verdade: “A terra é provisória e improvidente,/ tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,/ mas a alma faminta não consente/ que lhe mintam!” Em desfavor de uma pré-estabelecida “luz conceitual” imantada das “perfeições da geometria”, que prefere encaixar a realidade nas paredes estreitas do conceito a modificá-lo – ou, na frase límpida de Millôr Fernandes, “trocar o fato pela versão” –, Tolentino faz um subentendido elogio da apreensão do real mediado pelo sensível. A poesia, diante do nada e da morte, torna-se, então, redentora: “o cisne aponta/ para a altura cantando”.

Inédito, o poema pertence ao livro O Mundo como Idéia, que “haveria de me custar quatro décadas de atenção obsessiva”, a ser lançado pela editora Globo: “longe de uma apologia, sob seu prosaico e altissonante título anuncia uma diagnose” em busca “das categorias do real” e “dos fundamentos do ser”.

Sidnei Schneider,
Rascunho. Curitiba, p. 14, set. 2001.


O ESPECTRO

A Ivan Junqueira

Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura...”

Bruno Tolentino,
Rascunho. Curitiba, p. 14, set. 2001.
O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.

16 dezembro 2008

TROFÉU AÇORIANOS DE LITERATURA 2008

PREMIAÇÃO ATINGE O CONJUNTO DOS POETAS DE PORTO ALEGRE

Para minha total surpresa, há pou-co subi ao palco do Teatro Renascença para receber o Troféu Açorianos de Literatura 2008 – Melhor Projeto de Divulgação da Literatura, promoção da Secretaria Municipal de Cultura/ Prefeitura de Porto Alegre, junto com os outros três organizadores do PortoPoesia, festival ocorrido no final de setembro de 2007, e agora, na sua segunda edição, em outubro deste ano. Fica a homenagem estendida aos cerca de cem poetas que participaram do evento veiculando suas poesias através de leituras, palestras, saraus, oficinas, debates, filmes, músicas, performances, teatro, fotografia e gravuras. No agradecimento, procurei destacar o que me pareceu estava sendo de fato homenageado: “à importância desse gênero, o que todos aqui concordam, à poesia”. Valeu poetas e participantes!

Premiados no Açorianos de Literatura 2008

15 dezembro 2008

O FANTÁSTICO EM KAFKA E GARCÍA MÁRQUEZ

Uma ponte entre A metamorfose e Cem anos de solidão




Texto originalmente publicado no segundo número da revista 360 Graus (ver abaixo), que trazia uma incrível e fantástica ilustração a cargo do editor e artista plástico Fabriano Rocha: elefantes voando ao redor de um castelo theco, ante um céu formado por asas de borboleta.




Numa entrevista à Paris Review, em 1981, Gabriel García Márquez conta como começou a escrever: “Na universidade, em Bogotá, comecei a fazer novos amigos, que me iniciaram nos escritores contemporâneos. Uma noite um amigo me emprestou um livro de contos de Franz Kafka. Voltei à pensão onde morava e comecei a ler A metamorfose. A primeira linha quase me fez cair da cama. Fiquei muito surpreso. O começo é assim: “Certa manhã, ao despertar de sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se transformado em sua cama num inseto monstruoso...” Quando li essa linha, pensei comigo mesmo que não sabia que era permitido escrever coisas assim. Se tivesse sabido antes, teria começado a escrever há mais tempo.”

García Márquez ainda percorreria um longo caminho até produzir Cem anos de solidão, mas aqui já temos uma ponte que o une ao escritor tcheco e à obra em questão.

A metamorfose de Kafka é um duro retrato da família Samsa; da realidade européia após um estágio brutal de desumanização e alienação dos seres humanos, propiciada pela união do capital industrial com o bancário, gerando o feroz capital financeiro, que tinha levado o mundo a uma guerra mundial e o levaria ainda à outra. Essa situação histórica, entretanto, é externa, não figura diretamente na obra, nem mesmo como pano de fundo diante do qual se moveriam os personagens; pode ser depreendida através da análise, o que requer uma atitude e um esforço intelectual.

Se há espaço para a ironia, uma ironia fina e cáustica – como o episódio da maçã atirada pelo pai em Gregor, que lhe causa um ferimento e apodrece presa ao seu corpo, fazendo, mais tarde, com que “o pai se lembrasse que Gregor era um membro da família” – não há condições nem espaço para o humor, por silencioso e íntimo que fosse.

A narrativa é bastante sóbria também do ponto de vista da sexualidade dos personagens. Se, como de qualquer texto literário, é possível retirar ilações de cunho psicanalítico, os personagens se movem num universo frio e desprovido de desejo manifesto, com a rara exceção, talvez, do momento em que Gregor ouve a irmã tocar violino e conjetura tê-la para sempre no seu quarto.

Já em Cem anos de solidão, e de resto em todo o realismo mágico latino-americano, a situação política opressiva – e estamos no período dos regimes ditatoriais – é fartamente denunciada. Ainda que García Márquez se utilize do fantástico e da metáfora para descrever o momento histórico, essa relação é bem mais imediata do que a abstração necessária para compreender tal aspecto na novela de Kafka. O episódio do massacre na praça, por exemplo, realmente aconteceu, e o autor se valeu de testemunhos e documentos para recriá-lo literariamente; contudo, como nunca se soube exatamente quantas pessoas foram assassinadas, Márquez determinou que fossem três mil; “obviamente um exagero”, diria mais tarde, acrescentando que o Congresso e os jornais colombianos agora falam de “três mil mortos” como se fosse um fato histórico. O cotidiano muitas vezes irreal da América Latina; as obras do realismo fantástico europeu, como a de Kafka; e a forte presença de um imaginário surrealista na literatura e nas artes plásticas hispano-americanas – quase inexistente no Brasil até os anos sessenta do século passado – criaram o caldo de cultura necessário para que a urgência de expressão política sob uma censura severa gerasse o chamado realismo maravilhoso.

Em relação à ironia e ao humor, García Márquez os eleva aos píncaros do riso e da gargalhada. Esse aspecto – a capacidade de nós, os latino-americanos, rirmos das nossas próprias dificuldades, num período extremamente sério e crítico como aquele – encantou o mundo e franqueou-lhe os leitores, muitos dos quais já predispostos ao fantástico pelo psicodelismo da época. Sobretudo, é um elemento novo, uma contribuição para a literatura mundial, ausente na obra de Kafka e, de uma maneira geral, nos escritores europeus do período.

O texto de Márquez não é frio, é cheio de sensualidade e até de erotismo. José Arcádio e a cigana, por exemplo, fazendo sexo numa tenda pública; chega outro casal e começa a se despir; a mulher olha para José Arcádio e examina com uma espécie de fervor patético o seu “magnífico animal em repouso”: “– Rapaz – exclama – que Deus o conserve para ti”. O leitor é atingido pelo erotismo da cena e ri da exclamação estupefata da mulher. Esse tipo de situação gera um sentimento positivo, uma alegria de viver, completamente estranha à lúgubre narrativa kafkiana.

Quanto a pontos de contato entre os dois textos, o que esplende é a maneira completamente natural, cotidiana, de narrar um fato completamente mágico e sobrenatural. Segundo Jorge Luis Borges, essa é a própria condição para o bom relato fantástico, não sendo uma característica deste ou daquele escritor. García Márquez, de modo bastante simples, deu a receita: “Se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar em você. Mas se disser que há quatrocentos e vinte e cinco elefantes no céu, as pessoas provavelmente acreditarão em você”. Quando estava escrevendo sobre a personagem que é rodeada por borboletas amarelas, o autor pressentiu que “se não dissesse que as borboletas eram amarelas, as pessoas não iriam acreditar”. Esse pausado detalhamento do que é fantástico também se dá em Kafka – “as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo, agitavam-se desamparadamente perante seus olhos” – fazendo com que o leitor não jogue o livro na cabeceira e aceite como verossímil o fato de Gregor Samsa estar caminhando pelas paredes e pelo teto do seu quarto.

SIDNEI SCHNEIDER
Revista 360 Graus, Porto Alegre, n. 2, pp. 5-6, nov. 2005.

BIBLIOGRAFIA:
BORGES, Jorge Luis. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999.
COSTA, Flávio Moreira da. Kafka, o profeta do espanto. São Paulo: Brasiliense, 1983.
KAFKA, Franz. A metamorfose. Santiago: Lord Cochrane, 1988.
MAFFEI, Marcos (Sel.). Os escritores, as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, s.d.

05 dezembro 2008

QUATRO POETAS

Convidei Bárbara Lia, Laurene Veras, Neli Germano e Juliana Meira para abrir esta sessão do blogue. Bárbara vive em Curitiba. As outras três, em Porto Alegre. E convido os leitores a se aproximarem dos seus poemas.

.1








PROFANA

A cor do amor é branca,
e o amor tem uma covinha do lado direito do rosto
e o amor me olha como alguém
que jamais vai tirar a minha calcinha
e gozar o céu dentro de mim.
O amor sempre vai me olhar
como se eu estivesse num altar de papel.
Para o amor, eu sou uma rima
e rima não tem vagina.
Para o amor, eu sou uma ode
com uma ode ninguém fode.
Eu sou um verso alexandrino
jamais tocado pelo herdeiro deste nome.
Eu sou a palavra, e a palavra, a palavra é Deus
Deus ninguém come, mas,
será que beber
pode?

BÁRBARA LIA
Noir. Curitiba: ed. Autor, 2006.


SEGUNDA MORTE

O pelotão avança, cascata de passos
Em adágio, botas resvalando relva.

Coração acelera. O homem calvo cobre
Meus olhos. Aguardo o fim.

Lembro negro olhar em chamas, encanto.
Fatal certeza... Morrer? Já morri por ti.

BÁRBARA LIA
O sal das rosas. São Paulo: Lumme, 2007.

http://chaparaasborboletas.blogspot.com/
http://soulbarbaralia.blogspot.com/

Bárbara Lia é poeta, escritora e professora de História. Publicou os livros de poesia O sorriso de Leonardo (Kafka, 2.004), Noir (ed. do autor, 2.006), O sal das rosas (Lumme, 2.007), A última chuva (Mulheres Emergentes, 2.007), e o romance Solidão Calcinada (Secretaria Estadual da Cultura / Imprensa Oficial do Paraná, 2007).

2 -------------------------------------------------------------------------------










LEIA-ME

Se você
sente prazer
em me ler,
então seja eu
uma Bíblia Sagrada.
Tenha fé,
e me percorra,
em busca de Deus,
ou do Nada.

Mas se eu for em ti
um periódico,
até permito
que te deleites
com minhas imagens.
Nada metódico,
anote números
em minhas margens.
E depois
me abandone
ao esquecimento,
até desconjuntar-me o vento.

Eu quero mesmo
é ser em ti
um livro raro.
Que te admire
manusear-me
como eu fosse
teu privilégio.
Um artigo
dos mais caros,
uma homenagem
à memória,
um poema,
ou uma história.

E depois
de te entranhar
meu conteúdo,
antes do sono,
com cuidado
me descansar
no criado-mudo.

LAURENE VERAS


TRINTA E TRÊS

Desperdiço
o pulso
alguns vícios
outros sustos
duas ou três
insuspeitadas alegrias.

Esperando
para jogar os sapatos
aos corvos
e atravessar a neve descalça.

Diga trinta e três.

Ao fundo,
aquele
tango argentino.

LAURENE VERAS

http://lulinlulin.blogspot.com/
Laurene Veras é poeta, licenciada em Filosofia pela UFRGS, recentemente aprovada para o Mestrado em Literatura de Portugal e Países Africanos de Língua Portuguesa na mesma universidade, tendo antes concluído as cadeiras, sem dissertação, do Mestrado em Literatura Portuguesa na USP. Publicou poemas na revista Vox, nos jornais Blau, Vaia e Zero Hora.
3 -------------------------------------------------------------------------------










CASA DE INFÂNCIA

Tempo é criança jogando, brincando. Reinado de criança.
Heráclito – Fragmento 52


1

Ensaboar – enxaguar
Secar louça – guardar

- Deixa de ser lerda - dizia minha mãe
Ser lerda é brincar de faz-de-conta
Refletir-se nas bolhas de sabão...

NELI GERMANO
Casa de Infância, inédito.

2

As notícias chegavam lá em casa pela voz de um rádio
e de um jornal enorme, eu até cabia dentro dele.
O rádio sabia até quando algum parente nosso
passava mal ou falecia, endereço e tudo.
Narrava jogo de futebol e o Movimento pela Legalidade.
Meu pai achava importante saber o que acontecia no Mundo.
Ele e um tal de seu Ezalter ficavam horas e horas
conversando sobre essas coisas de gente grande.
O jornal tinha uma coluna infantil aos domingos,
Que eu lia todinha, de pernas pro ar...
Meus olhos espicharam junto comigo,
quando me apresentei ao Mário Quintana
neste mesmo jornal.

NELI GERMANO
Casa de Infância, inédito.

Neli Germano é poeta e concluiu parte dos cursos de Letras, Filosofia e Serviço Social. Participa das antologias Poemas no Ônibus, Garimpando Letras, Pérgula Literária, Vínculos, Gente da Casa e do CD Confraria de Poetas. Publicou poemas em Zero Hora e participa de recitais, destacando-se o ‘Com as mulheres são outros 500’, no Teatro do SESI.

4 -------------------------------------------------------------------------------



1

sobre o papel
descansa a mão do poeta

um a um como notas
de orquestra
os versos lhe saltam à idéia

o velho maestro então lhes põe forma
rabisca contorna
verso a verso se arrisca
recita

por entre os dedos a caneta
transborda a tinta
flutua a pena

da mão trêmula à escrita
rege um poema

JULIANA MEIRA
inédito


2

o canto
da sala
cujo pó guarnece
vê o sol que desce
da vidraça entreaberta
desabitado ouve
a passarada o jornaleiro
o cachorro a piazada
exposto à poeira
da vida que é lá fora
na calçada
pena que o vento lhe condena
à luz míngua sorrateira
vexado ouve a gente toda
barulhenta
o canto
cala

JULIANA MEIRA
inédito
Juliana Meira é poeta e advogada. Nasceu em Carazinho e reside em Porto Alegre desde 2006. Poeta de sangue novo e promissora, participa de recitais, e apresentou-se no 2° PortoPoesia.

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03 dezembro 2008

"AO TELEFONE" NO LIVRO DA TRIBO














Confesso que eu tinha um tanto de preconceito em relação ao Livro da Tribo, agenda com poemas e ilustrações a cada dia do calendário, que há vários anos é comercializada nas livrarias do país inteiro. Alcançou, segundo me disse o poeta Lau Siqueira, 100 mil exemplares, e tornou a sua poesia conhecida fora da Paraíba, onde vive e dirige a Fundação Cultural de João Pessoa, e do Rio Grande do Sul, onde nasceu. Na edição 2009/2010 também participo, com o poema Ao telefone. Eu, Lau, Ricardo Mainieri, e uma pá de outros-&-outras poetas. Páginas coloridas, bem impressas, em 16 modelos, um luxo.

AO TELEFONE


tua voz
de pêssego,
úvula de
cereja

vejo-a
concentrada
pitanga

redonda
lima,
ardor de
jambo

sabor
de ameixa,
cheiro de
cupuaçu:

maciez
de figo,
mucosa
de uva,
tato de
caju.

Sidnei Schneider