21 dezembro 2006

NOVÍSSIMA: IRACEMA MACEDO

Iracema Macedo nasceu em 27 de junho de 1970, em Natal, Rio Grande do Norte. Cursou Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou três coletâneas junto com os poetas Eli Celso e André Vesne. Atualmente faz doutorado em Filosofia na Unicamp. No ano 2000, publicou seu primeiro livro individual, Lance de dardos, que reúne poemas inéditos e poemas publicados anteriormente.


AS VESTES

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços.

IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas
construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas



BILHETINHO

Quando eu morrer
mesmo em tristeza devastada
morrerei da alegria de terem sido possíveis:
o amor a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras


O HORTO

Juazeiro, Juazeiro,
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
tanta imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito



A CHEGADA DE MERCÚRIO

Acendes espelhos por onde passo
e mesmo em tua fúria
inventas silêncios que me acalmam
mirantes fogueiras viagens
tudo me trazes nos dias



REPOSTA AO ANJO GABRIEL

Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua
em que ancoras
tua ventania nos meus braços



DANDARA

Eu só acreditava em Drummond:
o amor chega tarde
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos


Iracema Macedo. Lance de dardos. Rio de Janeiro: Estúdio 53, 2000.

DESVIO DE QUE MESMO?

Deu no Rascunho 78, outubro de 2006, Teoria dos Versos, via Ronaldo Costa Fernandes (DF). Destaque para o trecho em negrito, para que não fiquemos buscando apenas formalidades:

Os formalistas russos foram os primeiros a sistematicamente abordar a produção literária como desvio. (...) Sobre o fato de que a linguagem literária se afasta do coloquial parece que todos estão de acordo. Também concordam quando se afirma que a linguagem dita coloquial ingressa no poema, deixando de fazerparte de um código que se restringe à comunicação e ao intercâmbio social, para fazer parte do código poético. A teoria do desvio e do estranhamento nos seduz porque não é apenas um apetrecho lingüístico, mas uma produção de sentido, de formação de pensamento poético, distinto do pensamento da linguagem coloquial e distinto mesmo da filosofia ou do pensar do ensaio. (...) Logo, o estranhamento não é apenas verbal, mas conceitual. O desvio se opera não na dificuldade ou no grau de distorção da linguagem, mas ao apresentar um fato lingüístico novo, original, uma maneira inteligente e pertinente de "sentir-pensar" o mundo. O desvio não é também um desvio mental, que poderia ser interpretado como uma forma esquizofrência de representar a realidade, mas é uma maneira de mostrar a realidade de um ponto de vista distinto daquele que a linguagem comum apresenta cotidianamente. A poesia é um deslocamento, a partir do ponto de vista do poeta que observa o mundo, e também um centramento, já que o poeta reinterpreta a realidade e a apresenta (e nomeia) como um mundo possível e poético.