20 junho 2007

POETA CONVIDADA: NELI GERMANO


NO TERMINAL

Sentado, ele ria - ria muito
Nada via - e ria
Roupa rosto sapato, em fatia
Dentes grandes, olhar estreito

Agachando-se em sua caixa de engraxate,
De cu pras estrelas,
a-dor-mecia


CASA DE INFÂNCIA

1

Meia-água
Madeira novinha, perfurada por nós de pinho
Coberta de telhas vermelhas: francesas e cumeeiras.

Por que meia água?
Como poderia uma tábua nova ser furada? e por nós...
De que lugar teriam vindo as telhas que não eram francesas?


2

Minha mãe amava juntando latas de azeite vazias,
e meu pai, à noite, desmanchando-as com suaves marteladas,
até tapar todos os buracos dos nós das tábuas.
Logo logo nasceria mais um bebê,
minha mãe teria que se proteger do minuano
na quarentena.


3

Meu pai amava construindo um puxadinho:
a lavanderia da casa.
E minha mãe, lavando roupas:
uma trouxa por dia.


Neli Germano, 2007

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10 junho 2007

AUGUSTO MONTERROSO: HUMOR E IRONIA CONTRA UMA VISÃO DE MUNDO


Sidnei Schneider, 2006

O escritor Augusto Monterroso, ainda pouco traduzido entre nós, é um dos mais importantes da literatura latino-americana, e mestre maior do conto breve no panorama mundial. Amante da narrativa irônica e bem-humorada, quase sempre curta, revelou-se um crítico eficaz daquele tipo de espírito que entregaria de bom grado a sua cabeça a Mister Taylor, o personagem norte-americano que dá título a um de seus melhores contos: traficante de crânios humanos reduzidos, oriundos de um país latino-americano, que viram uma espécie de pingüim de geladeira nos EUA, expandindo os seus negócios e dizimando a população. A verve que caracteriza suas histórias é justificada pelo autor: “O humor é o realismo levado às últimas conseqüências. Com a exceção da literatura pseudo-humorística, tudo o que o homem faz é risível e jocoso”.

Citado repetidamente como o autor do menor conto do mundo, O dinossauro (Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá), espécie de lugar comum do qual poucos têm saído para de fato ler sua obra, Monterroso merece uma investigação mais ampla e dedicada.

Nascido em Tegucigalpa, Honduras, no dia 21 de dezembro de 1921, de família guatemalteca, cedo se mudou para a Guatemala, onde viveu até 1944, quando foi obrigado a exilar-se na embaixada mexicana em função de suas atividades contra o ditador Jorge Ubico, títere da United Fruit. Residiu na Bolívia e no Chile durante a década de 50, como diplomata, e fixou-se no México a partir de 1956. Da Guatemala, contudo, nunca abriu mão: “Está metida em mim”. Percebia com clareza o lugar que era reservado aos nossos escritores pela estupidogentzia reinante:

“O espírito de pesquisa não conhece limites. Nos Estados Unidos e na Europa, foi descoberta recentemente uma espécie de macaco latino-americano capaz de se expressar por escrito, talvez idêntico ao diligente macaco que batendo ao acaso nas teclas de uma máquina de escrever reproduza os sonetos de Shakespeare. Uma coisa assim maravilha essa boa gente, e não faltam dispostos tradutores de nossos livros ou senhoras e cavalheiros ociosos para comprá-los, como outrora compraram as cabeças encolhidas dos índios Jivaro. Há mais de quatro séculos, o frei Bartolomeu de Las Casas convenceu por fim os europeus de que nós éramos humanos dotados de alma porque ríamos; agora eles querem convencer a si mesmos da mesma coisa porque escrevemos”. (Como deixar de ser macaco)

Tito Monterroso, como carinhosamente era chamado, integra a literatura guatemalteca com livros de nomes por vezes cômicos, como Obras completas (e outros contos) (1959), onde se encontram os contos Mister Taylor e O eclipse (ver abaixo); A ovelha negra e outras fábulas (1969), único livro transposto para o português, através de Millôr Fernandes, e publicado aqui pela Record em 1983; e Movimento Perpétuo (1972), onde está Como deixar de ser macaco (acima). Falecido na Cidade do México no dia 8 de fevereiro de 2003, tem sido celebrado como um dos maiores do século XX.

Para Gabriel García Márquez, um livro de Monterroso “tem que ser lido de mãos ao alto. Sua periculosidade se funda na sabedoria dissimulada e na beleza mortífera da falta de seriedade”. Isaac Asimov registrou que seus pequenos textos “aparentemente inofensivos, mordem os que deles se aproximam sem a devida cautela e deixam cicatrizes. Não por outro motivo são eficazes”. E Carlos Fuentes setenciou: “Imagine o fantástico bestiário de Borges tomando chá com Alice. Imagine Jonathan Swift e James Thurber trocando notas. Imagine uma rã do condado de Calaveras que houvesse realmente lido Mark Twain”. A Fuentes faltaria recordar apenas as Histórias do Senhor Keuner, tiradas curtas e bem-humoradas do dramaturgo Bertolt Brecht, num estilo muito semelhante (às quais, diga-se de raspão, também acorre o excelente angolano Gonçalo Tavares). Agora, à sobremesa.

O ECLIPSE

Quando Frei Bartolomé Arrazola se sentiu perdido, aceitou que nada poderia salvá-lo. A selva poderosa da Guatemala o havia sufocado, implacável e definitiva. Diante de sua ignorância topográfica, sentou-se com tranqüilidade para esperar a morte. Quis morrer ali, sem nenhuma esperança, isolado e com o pensamento fixo na Espanha distante, particularmente no convento de Los Abrojos, onde Carlos V condescendera uma vez a descer de sua eminência para lhe dizer que confiava no zelo religioso de seu trabalho redentor.

Ao despertar, viu-se rodeado por um grupo de indígenas de rosto impassível que se dispunham a sacrificá-lo ante um altar, um altar que a Bartolomé pareceu como o leito em que descansaria, por fim, de seus temores, de seu destino, de si mesmo.

Três anos no país lhe haviam conferido um domínio razoável das línguas nativas. Tentou algo. Disse algumas palavras que foram compreendidas.

Então floresceu nele uma idéia que teve por digna de seu talento, de sua cultura universal e de seu árduo conhecimento de Aristóteles. Recordou que para esse dia se esperava um eclipse total do sol. E dispôs-se, no mais íntimo, a valer-se desse conhecimento para enganar a seus opressores e salvar a vida.

- Se me matarem – lhes disse – posso fazer com que o sol escureça na sua altura.

Os indígenas o miraram fixamente, e Bartolomé surpreendeu a incredulidade nos seus olhos. Viu que se produziu um pequeno conselho, e esperou confiante, não sem um certo desdém.

Duas horas depois o coração de Frei Bartolomé Arrazola jorrava seu sangue veemente sobre a pedra dos sacrifícios (brilhante sob a opaca luz de um sol eclipsado), enquanto um dos indígenas recitava sem nenhuma inflexão de voz, sem pressa, uma a uma, as infinitas datas em que se produziriam eclipses solares e lunares, que os astrônomos da comunidade maia haviam previsto e anotado em seus códices sem a valiosa ajuda de Aristóteles.


Tradução Sidnei Schneider, 2006
Resumo do texto publicado no jornal Hora do Povo, São Paulo, 19 abr. 2006, p.8