19 dezembro 2005

VALEU, PAULO HECKER


O poeta e crítico gaúcho faleceu no último dia 12, em Porto Alegre, na sua casa, aos 79 anos. Para ele, no jogo da vida, se trata de fazer o que se pode no mundo, o que principia pelos outros, para acabar de ser quem se é.


O Paulo Hecker era um cara do bem. Digo isso pensando em todos aqueles que, ao contrário, se vendem para os outros como pessoas legais, que muitas vezes se acham pessoas legais, mas estão contra o ritmo do mundo, da vida, do amor, da história.

Era poeta, contista, dramaturgo, tradutor, novelista e amigo. Começou como crítico literário, estabelecendo-se como um dos mais destacados pela independência e seriedade, atuando continuamente em vários jornais, no Rio Grande do Sul e fora dele, tornando-se referência nacional por sua atuação n’ O Estado de São Paulo. Nos últimos vinte anos foi se concentrando cada vez mais na poesia, gênero essencial, do qual historicamente derivaram todos os outros, inclusive o discurso lógico, escancarado desvio de linguagem do que era o estabelecido. E Hecker olhava para tudo, propiciando, nos momentos mais felizes, aquela espécie de “dança do intelecto” de que falava Ezra Pound ao se referir à logopéia.

Era um crítico atento, diante de novos e consagrados. Capaz de descobrir, por exemplo, Fernando Pessoa na década de 40, remando contra a opinião de amigos como os poetas Mário Quintana e Paulo Corrêa Lopes, que o achavam sem ritmo. Capaz de ver declínio na obra de José Saramago quando este acabava de ganhar o Nobel – hoje se aprende isso na universidade, mas naquele momento não era fácil dizê-lo. Isso para ficar em dois casos. Também era crítico de teatro, cinema, dança, artes plásticas, televisão, e o que mais pintasse pela frente, fosse bom ou ruim. O que degustasse não ficava sem algumas linhas.

Para o Fenestra, jornal editado por Jorge Fróes e Cézar Dias, ao qual na época me integrei, Hecker deixou um poema que é uma belezura só, hoje presente no livro Nem tudo é Poesia:


OS FILHOS CRESCEM

Os filhos crescem.
Aquela coisa mais querida do mundo
de repente tem opinião,
derrama por querer a sopa toda,
não para de chorar de pura raiva.

Os filhos crescem.
Querem entrar no grupo que os não quer,
pedem briga, dão gritos pela rua
a clamar eu sou eu
por não saberem quem são.

Os filhos crescem
e ficam diante de si como num ringue.
Vão se bater até beijar a lona?
Se duvidarem, vão.

Os filhos crescem.
Desenha-se a existência em cada um,
os pais ficam olhando, que fazer?
E mesmo quando acertam, que é que muda?

Os filhos crescem
e não adianta se querer dar tudo,
nem a alma.
Desejam outras almas,
são outros.

Os filhos crescem.
Sem ler nossos romances para eles,
se metem em capítulos inéditos.
Já não são nós, se sentem vitoriosos.
E continuamos eles...

Paulo era um ledor – o termo é dele. As dezenas de milhares de livros da sua biblioteca que o digam: “Permanecem quietos, de pé,/ apesar da umidade, apesar dos insetos,/ apesar das ausências do leitor/ para ir levando a vida,/ esse hiato ante os quarenta mil/ que conhecem o real e o possível,/ vivem o tempo até a eternidade./ Quando eu morrer, não morrerão.” Mas era um ledor no mundo. “Porque nunca botaste a literatura na frente da vida, embora tenhas passado a vida lendo”, na feliz observação do poeta Celso Gutfreid.

Não era difícil encontrar o Paulo Hecker pela cidade. Sempre gostei de ver poetas e escritores no mundo: nas ruas, no cinema, na vida. Não faz muito o vi num show do projeto Unimúsica, no Salão de Atos da UFRGS: ali, aquele cidadão de quase 80 anos, curtindo a boa música instrumental brasileira no meio de uma platéia bem mais jovem. Dava uma alegria só de percebê-lo, de saber que se podia envelhecer sem virar careta ou ranzinza, sem perder a conexão com o circundante. Naquele dia ele me lembrou o Barbosa Lima Sobrinho, intelectual atuante até os 105 anos, caso comprovado de alguém sem motivo para morrer até que o inevitável aconteça. Faz pouco, assistimos ao mesmo filme na Casa de Cultura Mário Quintana. E no mesmo local, há menos tempo ainda, no final da sessão eu quis ir ao pequeno banheiro da sala Norberto Lubisco mas estava ocupado, até que dele saiu o Paulo Hecker. Lance de dados gratuito com que a vida nos oferece a última visão de um poeta.


“HECKER E EU”

Tive, pessoalmente, pouco contato com ele, mais por um jeito meu de ser do que dele. Lembro do dia em que fui lhe entregar minha tradução do José Martí, meu primeiro livro, quando me falou da sua tradução de A rosa branca (poema sem título originalmente, 39ª seção de Versos Sencillos do poeta cubano). A partir do volume que lhe dei, traduziu os versos da música Guantanamera, tradução que, por falta de espaço, acabou não entrando no meu Versos Singelos, ficando apenas a letra original no apêndice e uma nota a indicar quais estrofes do conjunto traduzido a compunham. As poucas linhas com que depois apresentou Martí e as duas traduções no livro Só Poema Bom revelam sua origem, até no equívoco de chamar o músico Pete Seeger de Peter. É pouco o contato, modestamente é meu recuerdo, e é quase o que desejo na relação com escritores muito conhecidos.

Um outro ponto de encontro é que ambos fizemos nossa tradução de The tyger, do William Blake. Eu sempre pensava em mostrar pra ele, mas nunca o fiz e agora é tarde. Nesse instante, agora mesmo ao escrever o de cima, lembrei que ele recebia regularmente o Rascunho, jornal literário do Paraná, e talvez tenha lido nele, em julho, os poemas do Blake por mim traduzidos, entre eles o rugido selvagem do meu Tigre.


CORAGEM INTELECTUAL

Outra faceta inseparável do todo em Hecker é sua coragem. Certa vez, para um jornalista, explicitou de modo muito simples a sua independência e verdade no exercício da crítica: “Eu acho o que achei”. Defendia o que pensava, via nisso um grande bem, doesse a quem doesse, fosse amigo, cidadão famoso, dono de jornal, ou adepto de velha opinião dominante travestida de novidade. Quanto a isso, o que mais me impressionou nele foi sua opinião sobre José Stálin, absolutamente contrária à corrente dominante, isso vindo de alguém que não era nem militante político nem comunista de carteirinha: “A lição de Stálin já mudou o mundo para melhor”, escreveu num primeiro momento. Inquirido por Gilberto Wallace, na Folha de Letras de dezembro de 2000, sobre o que teria a acrescentar a essa confessada admiração, respondeu: “Que é verdade. A mídia americanizante faz dele um monstro. Esquecem que é um escritor que instruiu para o bem gerações com seus livros e que não há modo de, escrevendo, alguém passar pelo que não é, já que escrever revela o autor para si mesmo. Esquecem que foi quem começou a ganhar a guerra e assim se pode dizer quem a ganhou, tendo comandado todo o esforço nacional bélico como as operações no front. Esquecem seu triunfo diplomático no após-guerra, nada menos que sobre Churchill e Roosevelt. Esquecem que sem ele a Revolução não teria ido adiante e ainda que fez, em pouco tempo, da pobre Rússia, o segundo país no mundo. Não há que tirar o chapéu? A quem persista em dúvida, recomendo a biografia de Isaac Deutscher, também publicada entre nós. O autor, trotskista, parte de um ajuste de contas com Stálin e, depois de oitocentas páginas de pesquisas em arquivos, jornais, documentos, vê-se obrigado a reconhecer tratar-se de um grande homem.” Contestar a isso, usando, para tanto, as referências quase monocórdicas que recebemos sobre o tema parece fácil e de bom tom. Parece. Aí é que está a grandiosidade de Hecker. Preguiça intelectual nunca levou ninguém ao paraíso. Nem perto.



FUTEBOL & POESIA

Uma vez ele enviou um bilhete, agora publicado na imprensa pelo destinatário Celso Gutfreind (Zero Hora, 17/12/2005), onde se pode ler muita coisa para além do futebol, verdadeira aula de filosofia “Tua carona foi razoável em termos de acolhida e velocidade, especialmente nas curvas. Poderia ser melhor se olhasses menos para o lado esquerdo e revisses teu conceito sobre o Marinho (zagueiro do Grêmio). Zaga é conjunto, é grupo, e teu ponto de vista está fora do todo. Assinado PHF.”
Estou viajando demais num bilhete? Então vejamos esse texto, O que é futebol, também de Nem tudo é Poesia:

O QUE É FUTEBOL

Brincadeira tem hora, vinte e dois homens correndo atrás de uma bola! – zombam os leigos. Não vejo graça, só dá homem – dizem as mulheres. Homossexualismo latente, sentenciam os freudianos a ver sexo em tudo. E até Jorge Luis Borges, que sabia das coisas, se indignava com a importância dada ao futebol na Argentina, achava frivolidade demais.

Não acho, não é. Ele empolga o mundo inteiro, deve haver uma razão para isso. Afinal, o que é o futebol?

A sério, nas competições importantes, são onze homens dando tudo para vencer outros onze dando tudo para vencer. Nele se trata de fazer o que se pode no mundo, que principia pelos outros, para se acabar de ser quem é. Uma tentativa entre outras, e das mais completas, de cumprir a própria humanidade. E não só a dos que estão em campo, também a das torcidas inumeráveis que com eles se identificam. Na aparente simplicidade, o futebol atualiza o drama humano de enfrentar, buscar superar o adverso até a redenção de uma vitória, ainda que passageira como tudo na terra.

NUNCA ME SENTI TÃO DO BRASIL

O Hecker também era capaz de escrever umas coisas simples, injustamente desvalorizadas por alguns, que acabavam soando como uma salutar e instigante provocação se o ambiente fosse aquele superprovinciano tentando a todo custo se passar por cosmopolita, embora o intento dele fosse apenas singelo: expressar um sentimento. Querem ver?

SER BRASIL

Jovens, escurinhos, vitoriosos
a tevê dá
cada jogador do pré-olímpico
cantando o hino nacional.
Jovens, escurinhos, vitoriosos
cantando.
Nunca me senti tão do Brasil.

Não sei quanto a vocês, meus amigos, mas de minha parte quero envelhecer como o Paulo Hecker Filho.

Sidnei Schneider, Dez. 2005

2 Comments:

Blogger Henrique disse...

Oi, Sidnei, tudo tranqüilo? Só em teu blog para se encontrar um depoimento substancial como esse sobre o Paulo Hecker e ainda se deparar com surpresas como o 'garimpo' que fizeste da obra de Heitor Saldanha. E a tua nova produção, quando vai dar uma palhinha?

19/12/05 09:17  
Blogger Carlos Besen disse...

Quero envelhecer como o Paulo, mas só em relação à sua atividade, não em relação ao profundo esquecimento que tivemos dele. Ou estarei errado?

19/12/05 12:34  

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