11 dezembro 2005
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Poeta dos bons, nasceu em Cruz Alta, 1910, e morreu em Porto Alegre, 1986. Morava na Furna 111, na Rua Sarmento Leite. Eu o conheci nos altos do Mercado Público, ao redor do bar-restaurante que ficava na entrada da FRACAB (Federação Rio-grandense das Associações Comunitárias e Amigos de Bairro), à época em que o bem-humorado Washington Ayres era o presidente, em 1982. Luis Fernando Prestes foi quem o apresentou a mim, sorrindo satisfeito dentre a barba asiática, como a revelar as altas qualidades do outro com um toque de amistoso deboche , bem do seu feitio: "É, ele é poeta..." Ao que Dileta, secretária da entidade e líder comunitária da então Vila do Respeito, orgulhosa completou : "Ele foi viver com os mineiros de Arroio dos Ratos..." Eu era jovem, não tinha dimensão de quem poderia ser aquele personagem, mas gostei do aperto forte e digno da sua mão. Era um tipo sobranceiro e curioso, óculos de aro preto recortados sobre a cara.
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Sobranceiro é uma palavra que combina bem com ele, de vastas sobrancelhas, rosto vincado pelas galerias do tempo. "Sempre me fascinou a vida dos homens que trabalhavam nas minas de carvão". No início dos anos 50 decidiu trabalhar numa delas, na região de São Jerônimo. "Todos os dias eu decia ao fundo do poço e via como era a vida de um mineiro. Trabalhei ali uns dois anos e meio e encontrei o tema das Galerias Escuras (1954). Foi uma forma de sair em busca da poesia, embora não seja necessário que para se escrever sobre alguma coisa se participe diretamente dela". Mais tarde, os mineiros souberam do livro e dos poemas e deram a Saldanha uma lanterna de mina de presente, a luz que iluminava seus caminhos.
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Em 1958 foi morar no Rio de Janeiro com a contista gaúcha Laura Ferreira, com quem casara um ano antes, e lá permaneceu por doze anos. "Aí a vida foi intensa", comentava. Conheceu Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Clarice Lispector, de quem foi muito amigo, Ferreira Gullar, Helena Jobim, os irmãos Campos, Décio Pignatari. Houve de tudo um pouco nesse tempo: boemia, debates, agitação, poesia. E o nascimento de seu filho, André, tema de um bonito poema escrito anos mais tarde:
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nos parecemos tanto
eu e meu filho
que brigamos sem saber por quê
e nos amamos sem saber por quê
mas ele é jovem e inteli-gente
espero um dia
nos compreendamos sem saber por quê
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Hoje, após essas leituras, uma antiga lanterna de metal exposta na sala da minha casa, daquelas movidas a carbureto, e oriunda da mesma região carbonífera, ganhou em significado. Se antes lembrava o trabalho quase desumano dos mineiros, as gravuras de Danúbio Gonçalves sobre o tema, o romance Germinal de Émile Zola, o trabalho infantil nos versos de William Blake, as minas de Criciuma que visitei, e toda a história do início do capitalismo e do movimento obreiro, agora ganha a contribuição de Heitor Saldanha.
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Muitos anos foram necessários para associar aquele poeta da FRACAB, o Saldanha, como o chamavam, ao autor dos versos que agora leio, admiro e investigo.
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Sidnei Schneider, 2005
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A MORTE DO TOCADOR DE CARRO
O grito estancou o silêncio.
Mas quê!
As comportas são roxas
quando nos sangram as unhas.
Escuta,
escuta que ainda se ouve
vir de longe o carro dele
rolando como um trovão
lá bem no fundo da mina.
Também,
o carvão escuro,
também, galeria escura,
vida escura,
tudo escuro,
como é que um homem há-de?
Como é que um homem não há-de
morrer esmagado ao carro
companheiro há tantos anos?
Escuta,
escuta que ainda se ouve
o subir do carro dele
rolando como um trovão
pela galeria escura.
Rolando como um trovão.
(...)
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A Morte do Tocador de Carro, Heitor Saldanha,
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in FELIX, Moacyr (Org.). Violão de rua II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
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COMPROMISSO A UM MINEIRO TRABALHANDO
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(trechos)
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Não quero e nem permitirei por certo
que enfeitem, desfigurem teu semblante.
...
Há os que vivem cantando para a morte
enamorados de famintos vermes,
e nós cantamos para não morrer,
para que a vida cumpra seus desígnios.
É muito mais alegre, embora trágico,
quando se canta em meio ao combate.
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Procuro esclarecer nossa linguagem
para que todos possam compreendê-la,
para que façam coro e nos ajudem
todos os que ainda amam sobre a terra
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SALDANHA, Heitor. A hora evarista. Porto Alegre: Movimento, 1974.
(reunião dos livros de poesia do autor)
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Heitor Saldanha, Autores Gaúchos, v.2, Instituto Estadual do Livro, 5. ed., Porto Alegre: IEL, 1997.
1 Comments:
estou conhecendo Saldanha apenas agora... estou indo morar num apartamento que foi dele. a lanterna que ganhou dos carvoeiros ainda está lá. estou encantada com a história... gostaria de saber mais sobre ele. elenfurg@hotmail.com
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