07 fevereiro 2007
O poeta e jornalista Marcus Minuzzi, que conheci faz pouco e já se tornou um amigo, inventariou dentro de si uma dicção ovariana e recrutou a luz plena do abacate – símbolo macio de um modo de sentir, para com ele encher de poesia o circundante sob a ótica do feminino. É uma escritura com suavidade de musgo, prolífica e vertical como o capim do chão, que esparze os odores do enlace amoroso fazendo do sexo o lugar do sagrado, campo de pouso da ave que voa.
Um exemplo? Diante da photoshopista apropriação da beleza epitelial das madonas da publicidade e do pornoegótico e onipresente fetiche visual da nossa época, Marcus atira a sua lança em outro terreno, mais fértil e vivo:
O nu destoa da beleza feminina. A mulher vence batalhas uterinamente. Seu sol é o sangue que menstrua, severo e doce.
Assim termina Os Biscateiros Alfaiates, um poema que vinha enaltecendo o nu por outra fresta: Eu havia sonhado com índias de peito adulto. A nudez índia me lancinou. Leva-me ao leito rumoroso do teu rio. E que iniciava rejeitando a própria rejeição à sua fala: Li certa vez que não me querem. Obrigado, pois mais lírico é não querer, e chorar com isso.
Em A Garçonete, o eu lírico do poeta se dirige a uma personagem do cotidiano, musa trabalhadeira desprovida de Olimpo, num registro símile ao efetivado por Baudelaire quando cruza com uma desconhecida nas ruas de Paris em A Uma Passante. A comparação não pretende destilar uma influência, descabida nesse caso, apenas recuperar o conceito de que cada novo poeta ou poema cria os seus precursores.
Alimentei meus sonhos,
Te olhando.
A senhora não há de ser descoberta
Pela minha esposa,
Nem eu pelo seu marido.
Namoramos em segredo.
Tirar sua roupa
Não está nos meus planos.
És a flor das não-comidas.
A senhora digna, dura e de saias,
A quem somente amamos.
O café esfria, atendente,
Mas permaneço a contemplar-te.
(A Garçonete – trecho)
A luz do abacate, expressão que dá nome ao seu blog (ver abaixo) e ressurge em diferentes abóbadas poéticas, parece ressignificar-se em O Poema do Peito, através do verso A luz da falha. Minha leitura pessoal dirige-me ao poema A Falta que Ama, de Carlos Drummond de Andrade, e ao modelo psicanalítico de Jacques Lacan que dá conta de uma falta original jamais suprida por completo, ainda que sempre estejamos em busca de abastecê-la:
Aprende bem isso.
Te lava nesse ribeiro.
Bebe-os, os peitos.
Toma-os em mãos.
Segura-os firmes.
Como o par do que se perdeu.
Ouve bem o teu pai:
Não terás coragem de largá-los, não.
São teus.
Última instância da posse e do desejo.
Calor do mar de dentro,
Onde se aninha um pássaro.
Maior desejo que isso,
Só o de ser terra,
Confundir-se com ela,
E renascer sob o signo do abacate.
São teus: recuperados.
Há que se guardá-los num cofre.
Resgatá-los na certidão de nascimento,
Na digital da identidade.
É o que acontece,
Quando
O homem suga os seios da sua
Mulher.
(O Poema do Peito – trechos)
Em Os Ratos, poema que parece ter algum eco criativo na prenhez da Ode aos Ratos, canção de Edu Lobo e Chico Buarque (CDs Cambaio, 2001 e Carioca, 2006), a escavação inicia de um modo e termina de outro. Antes do que mera busca de uma escrita oxímora (só para usar uma palavrinha difícil num texto fácil), a contradição é a própria raiz do significado:
De pêlos
E pés,
Os ratos
E suas patas.
(...)
O amor da bela
Faz-me crer
Na
Minha
Própria
Pureza.
(Os Ratos – trechos)
Talvez seja preciso dizer alguma coisa sobre a aparência espichada de grande parte dos poemas, compridos como eles só, formados por versos de apenas uma, duas ou três palavras. Marcus parece pretender com isso uma leitura pausada, musicalmente lenta, saboreante. Adequada às páginas da web, impacientes para tudo que pareça longo demais ou discursivo de menos.
Em Aos Colegas do Ciberespaço, ele tematiza as visitas eletrônicas inesperadas, as naus desconhecidas que cruzam o mar das nossas fenestras virtuais: blogs, revistas, sites, etc. E com que propriedade:
Cinco
Minutos
Com
Você.
Pôr
O dedo.
(...)
Adorei
Não
Te conhecer,
Em
Nenhum
Lugar.
(...)
Ser
Água
Boa
É meu
Destino.
(Aos Colegas do Ciberepaço – trechos)
A poesia de Marcus tem por vezes um acento lírico, entendido como o do poeta que busca dentro do íntimo, no seu mais particular e fundo, algo tão pessoal e humano que paradoxalmente se projeta para encontrar o sentir do outro, o mundo externo, os leitores. Esse tipo de procedimento, referenciado pelas discussões de Adorno em torno da Lírica e defendido pela metapoesia praticada por Mário Quintana, lírico por excelência, não é exatamente o costume no momento atual, ainda que perpasse o que absorvemos da tradição lusitana. É o que acontece em Pedido de Adoção, no qual a fala lírica se dirige de modo quase patético a um personagem real da cidade, o poeta e brincante Mário Pirata:
Quero
Ser
Teu
Filho.
Já
Pensaste
Em
Deixar
Descendência?
(Pedido de Adoção – trecho)
Umas poucas vezes, Marcus procura o épico, como em O Povo Brasileiro:
As estações são verdadeiras. Carregam-nos. O Brasil é o próprio barco. Um dia fomos esta nau perdida no universo. Acharam-nos. O povo concreto quer ser brasileiro. E ser brasileiro, ainda, é um sonho.
A nau do povo é certeira. O povo é nobre. E vai, no futuro, envergar um cetro e uma coroa.
(O Povo Brasileiro – trechos)
Marcus também aprecia trocar as palavras de lugar, expediente que marca a poética de um Manoel de Barros, por exemplo. Para não alongar demais esse texto, cito dois versos já reproduzidos no seu devido contexto. É o caso do verbo escolhido para A nudez índia me lancinou, ou o do substantivo que acondicionará os seios recuperados pelo menino-homem: Há que se guardá-los num cofre.
Parafraseando o próprio poeta de Ordenhal nº 1, pode-se dizer que quando ele colore um ovo e o dispõe no mundo, o mundo serena.
Texto: Sidnei Schneider, 07 Fev. 2007
Ilustração: Cândido Portinari.
Blogue do Marcus Minuzzi:
http://www.aluzdoabacate.blogspot.com/
1 Comments:
"água boa"
meus seios
águas jorram
sobre pitanga madura
chafariz colorido
água boa de beber
Gostei do termo e/ou significado ovariano, acho que hoje, durante meu banho, foi este o meu sentimento. Parabéns pelo blog! Está a cada dia mais interessante.
Éfe
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