26 fevereiro 2007

GONÇALO M. TAVARES

Apesar do marketing da editora Bertrand apresentá-lo como um escritor português - seria uma tendência internacional? - o poeta nasceu em Angola, 1970. A obra de Gonçalo é uma das novidades - verdadeiras novidades, por favor - mais instigantes da poesia de língua portuguesa dos últimos tempos.

OS BRAÇOS

Como viver? Não há outra pergunta séria.
Um velho com o braço direito partido
.folheia o jornal com a mão esquerda.
Penso: assim seria mais fácil.
.........O corpo a decidir por nós.
Olho para mim: os dois braços intactos.
.........Que fazer?


O ESCRITOR

É um escritor ou então a mulher partiu com outro,
e o corpo não recuperou a vontade
de se preocupar com a roupa.
Espontâneo, vê-se; tudo o que traz vestido
apareceu-lhe à frente como numa colisão.
No entanto é discreto.
Tem a idade em que já não se desejam os olhares dos outros.
Branco, o cabelo transmite paz e
uma pequena desistência.
Tem cachimbo, óculos,
na mesa revistas francesas sobre a alma e os laboratórios que a estudam;
pega numa folha e começa a escrever.
Tem ar sóbrio, o corpo não dança,
vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros.
Escreve; passa a mão sobre a orelha.
É um escritor, em definitivo.
A luta não é com a solidão, vê-se que sabe usá-la,
percebe a sua natureza.


AS CANÇÕES

O coração necessita de afinação, como os rádios.
Por vezes, em simultâneo, executamos duas canções,
e uma perturba a outra,
e não é bom para os ouvidos.
Mas qual o botão que afina o coração?
Não é assim tão fácil.


Até aqui, poemas do livro 1, Observações.


CHÃO


Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.

Do livro 5, Homenagem.


UM DENTISTA

Conheci num poema de Auden
um dentista reformado que se pôs a pintar montanhas.
Pintou trinta e três montanhas como os pintores de parede
pintam trinta e três paredes. Depois parou, limpou o suor da
testa, pediu um copo de vinho e uma mulher, e despiu-se, embriagado,
fazendo sexo como um dentista
e não como um pintor de montanhas.
E se pensas que uma e outra forma de tocar numa mulher
são idênticas, então deves ler mais poesia.

Do livro 6, Explicações científicas e outros poemas.


A FORÇA

Nunca vi anjos nem aprendi orações
Como aprendi versos, mas desde cedo uma
Certa conspiração calma recolhida na parte
De trás da existência me foi dando
Conselhos, monocórdicos, pontuais;
Uma força constante que
Afastada dos dias e do seu ruído próprio
Me acompanhou. Nada religioso, nenhum Deus,
Nenhum temor, nenhuma adoração,
Chamemos à coisa: disciplina. E assim está bem.
O mundo avança e acontecem coisas,
E o meu corpo recolhe-se e faz o que tem a fazer.


AS FRASES

Do meu pai recebi desde menino uma imprudente
Forma de receber as frases que nos dizem: não esperar
Por elas numa cadeira, mas saltar em redor, eis
Um método que não era método porque era instinto:
Ouvir a frase de todos os pontos de vista,
Como se a linguagem depois de dita
Fosse uma matéria que permanecesse no ar,
E nós, animais representantes do diabo, à sua volta,
Tornássemos visível o que ela queria esconder:
A frase tentava exibir o rosto bem maquilado
E nós apontávamos a sua roupa íntima,
As borbulhas deselegantes, a sua fealdade e a sua falsidade.

Do livro 7, Autobiografia.



Ninguém esta preparado para o massacre. A criança cresce porque lhe prometeram calma. O olho abre-se porque lhe prometeram beleza.


A beleza é aquilo que é amado. A admiração e o assombro atiram pólen às coisas. O dia seguinte só surge porque algo do anterior não foi compreendido.


Os hábitos são uma fixação no mundo. As ações não se tornam roucas como a voz, mas perdem comprimento, largura e altura. Um hábito é uma coisa que já desapareceu.
Diante do inimigo mais forte sê doce: toda batalha é um negócio que não inclui música, mas sons disformes. Não se salva um barco não o construindo.


Do livro 8, Livro das investigações claras.


TAVARES, Gonçalo M. Um. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

há muito tempo procuro um poeta assim. você descobriu-o como? bela coletânea essa!
alcir

26/2/07 21:36  
Blogger Zaracotrim disse...

Devo dizer que não percebi o comentário "seria uma tendência internacional? - o poeta nasceu em Angola, 1970" e porque não seleccionaste um poema do "O Homem ou é tonto ou é mulher"? Aconselho vivamente :) Cumprimentos transatlânticos.

19/7/07 21:02  
Anonymous Anônimo disse...

é verdade que o homem ou é tonto ou é mulher é um dos textos mais brilhantes da actualidade

2/7/08 22:35  

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