18 dezembro 2008

O BAUDELAIRE DE BRUNO TOLENTINO

No inverno de 2001, eu e Jorge Fróes entrevistamos o poeta Bruno Tolentino (1940-2007), na residência do professor e psicanalista José Luiz Caon. Ele estava em Porto Alegre a convite de um seminário de corte lacaniano intitulado O nome do pai, realizado na Psicologia da UFRGS, no qual abordou o tema O pai apenado, sobre sua experiência numa prisão britânica. Depois de umas boas horas de entrevista, na companhia da fotógrafa Sílvia Prado, cedeu-nos as provas corrigidas do livro O mundo como idéia, para que as copiássemos. Foi comovedor esse empréstimo, uma grande confiança se estabelecia com esse gesto. Isso que já havia distribuído os livros que não tínhamos e um cedê da coleção O escritor por ele mesmo, editado pela Fundação Moreira Salles. Ainda assim, emprestou-nos as provas, e sem ao menos que as pedíssemos. Era um projeto com ilustrações escolhidas pelo poeta, depois abandonado pela editora Globo ao publicar apenas o texto, que percorria toda a história da arte. Não tínhamos nem dinheiro para tantas cópias em folhas tamanho A3. Xerocamos alguns poemas, escolhidos em cima da máquina. Um deles, O espectro, que particularmente me agradava, publiquei com sua anuência ainda inédito, precedido de uma breve apresentação, no jornal Rascunho, em setembro de 2001. A página trazia, numa bela ilustração de Rogério Coelho, um translúcido Baudelaire (acima, na foto de Étienne Carjat), diante de enormes prédios metropolitanos. O título vinha não só do imediato filme de Luis Buñuel, O anjo exterminador, mas de um poema do próprio Tolentino, O anjo anunciador, do livro As horas de Khatarina.


O ESPECTRO ANUNCIADOR

Um fato, carregado de significações, originou o poema O Espectro de Bruno Tolentino. Enquanto lia o filósofo Locke (depois, para afiar a linguagem e o sentido, o poeta escreveria Kant), à beira Tâmisa, percebeu a aproximação de um bêbado, certamente embriagado pelo Vinho dos Trapeiros, com uma manta e a cara “cuspida e escarrada” de Charles Baudelaire, aquele, o da foto famosa. Tal como escrevera o próprio no poema referido, tradução de Ivan Junqueira: “Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,/ Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,/ Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta”.

Em 1947, Vinicius de Moraes – que freqüentou a Universidade de Oxford, onde Tolentino exerceu a direção da editora de poesia em substituição ao poeta W.H.Auden – produzira Bilhete a Baudelaire, do qual se pode prefigurar o que seria ter diante de si o velho mestre: “Folheando-te, reencontro a rara/ Delícia de me deparar/ Com tua sordidez preclara/ Na velha foto de Carjat”.

A Tolentino, o espectro de Baudelaire, como um pai, apresenta-se com as feições e o sobrenome que legou aos filhos diletos: “Há múmias que uma vez desembrulhadas/ têm escrito na cara o nosso nome”. Outro pater noster, mais antigo, perfura os olhos do leitor na primeira visada: Dante Alighieri, em função da terza rima. William Blake, citado nominalmente, ressurge mais adiante na “rosa/ amada pelo verme e sem poder/ de o recusar”, tema de A Rosa Doente, de Canções da Experiência. O intelecto, “sempre ágil/ ao fazer de um trapézio o seu lugar”, constrói a partir de Machado de Assis (Capítulo 2 de Memórias Póstumas de Brás Cubas): “pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro”.

Não fosse sobre Baudelaire, deixar-se-ia passar a indagação, mas Edgar Alan Poe, a quem tanto deve o simbolista parisiense, não sentiria sua alma próxima, independentemente da intenção do autor, de “e aquilo a se agitar que nem um cume/ de palmeira no ar – e andando, andando/ e desferindo o olhar como um perfume// de gangrena fatal ensarilhando/ o eterno câncer da imaginação/ que desorbita a mente como um bando/ de morcegos agrava a escuridão”? E esta “palmeira no ar”, tão brasileira para quem está em terras britânicas, onde canta um Gonçalves Dias, nada teria com “A palmeira no final da mente”, verso que abre Of Mere Being, de Wallace Stevens, autor do agrado de Tolentino?

Em verdade, o poema é um encontro do poeta com a Poesia, metafórica e formalmente realizado, sob a égide de inúmeros precursores, sintetizados num só. Mas, repleto de sentido, não é um frio cabedal de referências. A aparição serve-lhe para refletir, numa espécie de epistemologia poética, sobre a verdade: “A terra é provisória e improvidente,/ tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,/ mas a alma faminta não consente/ que lhe mintam!” Em desfavor de uma pré-estabelecida “luz conceitual” imantada das “perfeições da geometria”, que prefere encaixar a realidade nas paredes estreitas do conceito a modificá-lo – ou, na frase límpida de Millôr Fernandes, “trocar o fato pela versão” –, Tolentino faz um subentendido elogio da apreensão do real mediado pelo sensível. A poesia, diante do nada e da morte, torna-se, então, redentora: “o cisne aponta/ para a altura cantando”.

Inédito, o poema pertence ao livro O Mundo como Idéia, que “haveria de me custar quatro décadas de atenção obsessiva”, a ser lançado pela editora Globo: “longe de uma apologia, sob seu prosaico e altissonante título anuncia uma diagnose” em busca “das categorias do real” e “dos fundamentos do ser”.

Sidnei Schneider,
Rascunho. Curitiba, p. 14, set. 2001.


O ESPECTRO

A Ivan Junqueira

Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura...”

Bruno Tolentino,
Rascunho. Curitiba, p. 14, set. 2001.
O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.

3 Comments:

Blogger Lisiane V disse...

muito bom este post! entrei hoje no teu blog, e surpresa, o Tolentino! Ontem também eu postei um poema dele no meu (com uma leve referência do poema q tu comentou, do cd, e posso ter escrito alguma bobagem, mas foi mais ou menos como eu pensei q fosse o poema,rs).

27/12/08 15:22  
Anonymous Anônimo disse...

vou entrar mais no teu blog.
gostei bastante mesmo.

13/1/09 17:31  
Blogger Leonardo T. Oliveira disse...

Obrigado pelo texto sobre o Espectro. (Y)

7/6/09 21:40  

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