AUGUSTO MONTERROSO: HUMOR E IRONIA CONTRA UMA VISÃO DE MUNDO
O escritor Augusto Monterroso, ainda pouco traduzido entre nós, é um dos mais importantes da literatura latino-americana, e mestre maior do conto breve no panorama mundial. Amante da narrativa irônica e bem-humorada, quase sempre curta, revelou-se um crítico eficaz daquele tipo de espírito que entregaria de bom grado a sua cabeça a Mister Taylor, o personagem norte-americano que dá título a um de seus melhores contos: traficante de crânios humanos reduzidos, oriundos de um país latino-americano, que viram uma espécie de pingüim de geladeira nos EUA, expandindo os seus negócios e dizimando a população. A verve que caracteriza suas histórias é justificada pelo autor: “O humor é o realismo levado às últimas conseqüências. Com a exceção da literatura pseudo-humorística, tudo o que o homem faz é risível e jocoso”.
“O espírito de pesquisa não conhece limites. Nos Estados Unidos e na Europa, foi descoberta recentemente uma espécie de macaco latino-americano capaz de se expressar por escrito, talvez idêntico ao diligente macaco que batendo ao acaso nas teclas de uma máquina de escrever reproduza os sonetos de Shakespeare. Uma coisa assim maravilha essa boa gente, e não faltam dispostos tradutores de nossos livros ou senhoras e cavalheiros ociosos para comprá-los, como outrora compraram as cabeças encolhidas dos índios Jivaro. Há mais de quatro séculos, o frei Bartolomeu de Las Casas convenceu por fim os europeus de que nós éramos humanos dotados de alma porque ríamos; agora eles querem convencer a si mesmos da mesma coisa porque escrevemos”. (Como deixar de ser macaco)
Tito Monterroso, como carinhosamente era chamado, integra a literatura guatemalteca com livros de nomes por vezes cômicos, como Obras completas (e outros contos) (1959), onde se encontram os contos Mister Taylor e O eclipse (ver abaixo); A ovelha negra e outras fábulas (1969), único livro transposto para o português, através de Millôr Fernandes, e publicado aqui pela Record em 1983; e Movimento Perpétuo (1972), onde está Como deixar de ser macaco (acima). Falecido na Cidade do México no dia 8 de fevereiro de 2003, tem sido celebrado como um dos maiores do século XX.
Para Gabriel García Márquez, um livro de Monterroso “tem que ser lido de mãos ao alto. Sua periculosidade se funda na sabedoria dissimulada e na beleza mortífera da falta de seriedade”. Isaac Asimov registrou que seus pequenos textos “aparentemente inofensivos, mordem os que deles se aproximam sem a devida cautela e deixam cicatrizes. Não por outro motivo são eficazes”. E Carlos Fuentes setenciou: “Imagine o fantástico bestiário de Borges tomando chá com Alice. Imagine Jonathan Swift e James Thurber trocando notas. Imagine uma rã do condado de Calaveras que houvesse realmente lido Mark Twain”. A Fuentes faltaria recordar apenas as Histórias do Senhor Keuner, tiradas curtas e bem-humoradas do dramaturgo Bertolt Brecht, num estilo muito semelhante (às quais, diga-se de raspão, também acorre o excelente angolano Gonçalo Tavares). Agora, à sobremesa.
O ECLIPSE
Quando Frei Bartolomé Arrazola se sentiu perdido, aceitou que nada poderia salvá-lo. A selva poderosa da Guatemala o havia sufocado, implacável e definitiva. Diante de sua ignorância topográfica, sentou-se com tranqüilidade para esperar a morte. Quis morrer ali, sem nenhuma esperança, isolado e com o pensamento fixo na Espanha distante, particularmente no convento de Los Abrojos, onde Carlos V condescendera uma vez a descer de sua eminência para lhe dizer que confiava no zelo religioso de seu trabalho redentor.
Ao despertar, viu-se rodeado por um grupo de indígenas de rosto impassível que se dispunham a sacrificá-lo ante um altar, um altar que a Bartolomé pareceu como o leito em que descansaria, por fim, de seus temores, de seu destino, de si mesmo.
Três anos no país lhe haviam conferido um domínio razoável das línguas nativas. Tentou algo. Disse algumas palavras que foram compreendidas.
Então floresceu nele uma idéia que teve por digna de seu talento, de sua cultura universal e de seu árduo conhecimento de Aristóteles. Recordou que para esse dia se esperava um eclipse total do sol. E dispôs-se, no mais íntimo, a valer-se desse conhecimento para enganar a seus opressores e salvar a vida.
- Se me matarem – lhes disse – posso fazer com que o sol escureça na sua altura.
Os indígenas o miraram fixamente, e Bartolomé surpreendeu a incredulidade nos seus olhos. Viu que se produziu um pequeno conselho, e esperou confiante, não sem um certo desdém.
Duas horas depois o coração de Frei Bartolomé Arrazola jorrava seu sangue veemente sobre a pedra dos sacrifícios (brilhante sob a opaca luz de um sol eclipsado), enquanto um dos indígenas recitava sem nenhuma inflexão de voz, sem pressa, uma a uma, as infinitas datas em que se produziriam eclipses solares e lunares, que os astrônomos da comunidade maia haviam previsto e anotado em seus códices sem a valiosa ajuda de Aristóteles.
2 Comments:
Cheguei ao seu blog através de uma pesquisa sobre Emily Dickinson, havia em 2005 um poema dela por você postado.
Estou escrevendo um texto com base nas pesquisas feitas por mim sobre Emily Dickinson. Gostaria de submetê-la a outros olhares, o seu se possível.
Bem, caso o seja, por favor, entre em contato comigo lunnaguedes@gmail.com.
Um grande abraço.
Olá Sid, aqui é Marcelo, teu companheiro da já longínqua militância política na década de 80 e eventual parceiro da ACM. Bela surpresa o texto do Tito Monterroso, certamente irei buscar a obra do autor. Numa primeira visada, guardada as devidas diferenças, ele me remeteu ao pequeno livro "O Enteado", do argentino Juan José Saer. Trata tb do choque cultural europeu/ameríndio, sem a ironia do Tito, mas com uma prosa vertiginosa e onírica. Se já o conheces, sabes do que estou falando. Se ainda não leu, fica a dica.
Ps: o Blog tá bem legal!
Grande abraço
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