18 junho 2005

3ª EDIÇÃO

A CABELEIREIRA



Entre os dedos ela ensaia meus cabelos.
Traça à mão o formato do pescoço.
Claro que percebe todos os arrepios.

Prende a respiração nos olhos azuis
e, por cuidado, redobra em carinhos
o que cega saberia bem fazer.

Dona dessa precisão felina da mulher,
tapeia água perfumada nos meus flancos.
Só a gelada navalha supera sua tesoura.

Banha-me três vezes a cabeça porque quer.
Assinto que é muito relaxante.
“Que bom”, agradece recompensada.

Rodeia-me sem levantar a cadeira.
O peito arfa inclinado sobre mim.
Desculpa-se com a colega: esquecimento.

Não sei se olho sua pele, olhos ou ventre.
Compreendo então que fala com as mãos
e me permito, inteiro, ao seu tato.

Já temos algo em comum. Cúmplices
no que ainda não se tornou palavra.
Abana com os cílios quando lhe dou adeus.


Sidnei Schneider
de Plano de Navegação

07 junho 2005

POESIA TRADUZIDA: MIGUEL HERNÁNDEZ

BOCA

Boca que arrasta minha boca:
boca que me tem arrastado:
boca que vem de muito longe
a iluminar-me de raios.

Alba que dá a minhas noites
um resplendor rubro e branco.
Boca povoada de bocas:
pássaro cheio de pássaros.
Canção que mexe as asas
para cima e para baixo.
Morte reduzida a beijos,
sede de morrer com vagar,
dás à grama sangrante
um duplo bater de asas.
O lábio de cima o céu
e a terra o outro lábio.

Beijo que roda na sombra:
beijo que vem rodando
desde o primeiro cemitério
até os últimos astros.
Astro que tem a tua boca
emudecido e fechado
até que um roçar celeste
faça vibrar tuas pálpebras.

Beijo que vai a um porvir
de homens e de mulheres,
que não deixarão desertos
nem os campos nem as ruas.

Quanta boca já enterrada,
sem boca, desenterramos!

Bebo em tua boca por eles,
brindo em tua boca por tantos
que caíram sobre o vinho
dos cálices amorosos.
Hoje lembranças, lembranças,
beijos distantes e amargos.

Afundo em tua boca minha vida,
e ouço rumores de espaços,
e o infinito sobre mim
parece se ter entornado.

Hei de voltar a beijar-te,
hei de voltar: afundo, caio,
enquanto descem os séculos
até os profundos abismos
como uma febril nevada
de beijos e namorados.

Boca que desenterraste
o amanhecer mais claro
com tua língua. Três palavras,
três fogos tens tu herdado:
vida, morte, amor. Aqui,
escritos sobre teus lábios.

Trad. Sidnei Schneider, 2004.

POETA CONVIDADO: JORGE FRÓES


DANÇO


Queres saber por que eu danço
danço porque vozes do passado
cantam para mim
e então respondo.
Danço porque sou Kikongo,
Kimbundo, Baluba...
Danço para que a poeira
que assenta em meu corpo
seja somente do ato de dançar.
Danço para libertar minha africanidade.
Danço porque o vento dança,
as flores, os bichos,
e esta é minha forma
de integração.
Danço para que lanças-de-desrespeito
não me atinjam,
mas sobretudo danço
porque vozes do passado cantam
e eu respondo.

Jorge Fróes, Porto Alegre-RS

Publicado no encarte Revista Negra,
da Revista Porto e Vírgula,1995




MAR


Ó mar !
Esquecer dói mais que lembrar.
Lembrar é assegurar novos dias.

Há no fundo do teu ser,
imersa, uma dor imensa
que revolve em teu
gigantesco estômago
o amargo gosto
de uma indesejável alimentação.

Das longas travessias...
Mar vermelho,
mar negro,
milhares,
mar morto.

Ó mar !
Esquecer dói mais que lembrar.


Jorge Fróes, Porto Alegre-RS

Publicado na Revista Continente Sul /1997

Marcadores: