ZELO DE ÍCARO
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Enquanto o vento derretia a cera da sua vida, teve ocasião de pensamento antes de se esborrachar sobre um enorme cactus no deserto do Arizona.
Arthur, ou algum outro – faz tempo, li isso numa revista Realidade.
A corrente de ar picou-lhe os ossos em espinhos bem maiores que os do cactus, e como emplastro fresco na pele arenosa do Mojave – já viram, faz décadas que li isso – foi resgatado, e recuperou o corpo e a fala meses depois.
Durante a queda, imagens de toda sua existência desfolharam-se ante o nada: viu o cão e a bicicleta, o primeiro dia de aula, certo jogo de rugby, os colegas no hangar, um beijo ganho na omoplata, coisas assim - mal as lembro. Agarrou-se então à imagem da mãezinha, mas nem ela o podia sustentar, caía sem fim, sem colo, sem apoio, irremediavelmente.
Próximo ao chão, no instante supremo e terrível, pensou que ia sujar suas calças novas. Eis a vida, agarrava-se a ela, alguém tem uma definição melhor?
Sidnei Schneider, 2008
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