19 novembro 2008

ZELO DE ÍCARO

Arthur F. Lurie, sargento da Força Aérea dos Estados Unidos, saltou de onze mil pés, puxou uma, puxou duas vezes a cordinha, e já sabem, o pára-quedas não abriu.

Enquanto o vento derretia a cera da sua vida, teve ocasião de pensamento antes de se esborrachar sobre um enorme cactus no deserto do Arizona.

Arthur, ou algum outro – faz tempo, li isso numa revista Realidade.

A corrente de ar picou-lhe os ossos em espinhos bem maiores que os do cactus, e como emplastro fresco na pele arenosa do Mojave – já viram, faz décadas que li isso – foi resgatado, e recuperou o corpo e a fala meses depois.

Durante a queda, imagens de toda sua existência desfolharam-se ante o nada: viu o cão e a bicicleta, o primeiro dia de aula, certo jogo de rugby, os colegas no hangar, um beijo ganho na omoplata, coisas assim - mal as lembro. Agarrou-se então à imagem da mãezinha, mas nem ela o podia sustentar, caía sem fim, sem colo, sem apoio, irremediavelmente.

Próximo ao chão, no instante supremo e terrível, pensou que ia sujar suas calças novas. Eis a vida, agarrava-se a ela, alguém tem uma definição melhor?


Sidnei Schneider, 2008
Texto lido no Porão do Beco, no evento Porão da Palavra, que contou com Marcelino Freire, Fabrício Carpinejar, Laurene Veras, Carol Teixeira, Olavo Amaral, Cris Cubas, Ricardo Silvestrin, Leandro Dóro, Telma Scherer, Antônio Xerxenesky, Valmir Jordão (Recife), Lúcia Santos (São Luís), Washington Cucurto (Argentina). Mais participações do músico Alexandre Florez e do trio jazz-choro-porrada de Moisés Lopes, Rafael Ferrari, Rodrigo Siervo. Ainda, o cineasta Gustavo Spolidoro, o editor do Vaia e co-promotor do evento Fernando Ramos e a designer Maria Júlia Barbosa. Deve estar faltando gente, cito os que estavam lá quando cheguei para o sarau, já depois do debate.

1 Comments:

Blogger Renato de Mattos Motta disse...

...o pior de tudo é morrer de calças novas e ser enterrado com as velhas!

22/11/08 13:16  

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