27 agosto 2010

CAMPEONATO GAÚCHO DE LITERATURA

Iniciado em junho, com partidas entre livros resenhados por um juiz, que ao final atribui um dificultoso placar, e com término previsto para dezembro, o Gauchão de Literatura movimentou a cena literária local. Os livros são os do gênero conto, lançados em 2008 e 2009.

Pretexto para reanimar a discussão crítica, envolve uma quantidade de escritores e resenhistas. Na 1ª fase, em curso e próxima do final, são 27 jogos classificatórios distribuídos em 9 chaves.

Dia 30/08, apitarei o último jogo da chave 6, com a difícil missão de resenhar os livros Fora de lugar, de Rodrigo Rosp, e Tempos frágeis, de Marilice Costi.

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18 agosto 2010

VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PQ TE AMO

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ENTREVISTA: POETA FLÁVIO BARRETO LEITE


Sempre tive curiosidade de saber qual era a trajetória, o que havia escrito, feito e vivido o poeta Flávio Barreto Leite, o Barreto Poeta. Também contista e romancista, aqui ele nos conta dos seus livros e publicações, da cena artística de Porto Alegre em anos passados, da sua experiência como diretor da Academia de Samba Praiana. Da vida no Recife, de andanças por outras capitais, de como conheceu Patativa do Assaré e Luis Gonzaga, dos versos que disse com Lenine. Poeta e ficcionista ativo, atravessa a história gaúcha e brasileira. No final, quatro poemas, e espaço para comentários (subtítulos do entrevistado).

1-Conta um pouco da tua trajetória, desde o início até a adolescência. Não esquecendo de nos dizer os momentos em que a poesia começou a piscar o olho pra ti.
ORIGEM RURAL. BISAVÔ AMERICANO, BISAVÓ CHARRUA E PAI REVOLUCIONÁRIO DE 23

Tenho origens no campo (pampa bageense) as quais transpiro com orgulho. E transpiraria, ainda que não o quisesse. É atávico. Todas as minhas raízes têm esta origem comum. Somente entre bisavôs uma esdrúxula e acidental exceção, de perfil bizarro: um bisavô paterno norte-americano, felizmente casado com uma índia charrua; e um de origem francesa, pela linha materna. Mas ambos fixados em Bagé, nos campos do pampa, ou além divisa, no Uruguai. A avó paterna tocava violão, cantava, e fazia versos. Improvisos, e acrósticos. O meu pai era um “gauchaço dos quatro costado”, peleou pelos ideais maragatos na Revolução de 23. Mas, apesar da origem rude, de gaúcho campeiro, era um homem lúdico e com um espírito jovem e arejado. Tocava violão, cantava e declamava em saraus, atividades culturais comuns da sua época. Fazia isso por amor à arte. Era um declamador veemente, de sonetos, sobretudo. E um boêmio inveterado. Só casou com a 5ª. noiva, que foi a minha mãe. Apresentava-se nas casas das famílias e nos Teatros de Bagé e arredores. E, ambos, avó e pai, trouxeram este forte amor à musica e à Poesia para o convívio familiar.

PRIMEIROS VERSOS AOS 13 ANOS. HOMENAGEM AO CACIQUE CHARRUA, SEPÉ TIARAYU

Produto dessa influência, aos 13 anos (1957), ao parir meus primeiros versos, apenas sacramentei uma espécie de documento hereditário. Um dos 2 primeiros Poemas chamava-se O Índio Santo. Era um épico, em homenagem a Sepé Tiayaru. Ali, ainda que de forma ingênua, já se podia perceber a sensibilidade para as questões sociais e políticas. O outro era de amor. Ambos, como dezenas posteriores, perdidos nas andanças da vida. Com 8 ou 9 anos vendi jornal no Mercado Público de Porto Alegre e aos 14 fui office-boy do então The First National City Bank of New York. E registro aqui, pela vez primeira de forma pública, um episódio insólito, mas verdadeiro. Ali, juntamente com mais um colega que era maior e pertencia à diretoria do Clube de Funcionários, mantive, clandestinamente, uma Casa de Jogo. Narro isso como se fora um fato ocorrido na vida de um personagem do Romance em trabalho, Cabeça de Poeta. Era, quem sabe, uma forma inconsciente e de igual nível rasteiro de dar o troco à exploração cretina que os gringos faziam com os funcionários menores. Pagavam metade do salário legal utilizando-se para isto de uma desculpa ilegal, safada e mentirosa. Tanto isso é verdadeiro que venci a ação trabalhista ajuizada contra o Banco através do Sindicato. Portanto, fui um guri de Bagé que apoiado pelo Sindicato dos Bancários deu de mango nos gringos. (risos)


2-Ao ingressar no mundo adulto, como se deram as coisas quanto a trabalho, escrita, cena poética, amigos, amores?

MOVIMENTO ESTUDANTIL, LUTAS PELA LEGALIDADE E CONTRA A DITADURA

Aí, meu amigo, inicia-se uma saga tumultuosa. Vindo com a família para POA ainda pequeno, aos 16 anos ingresso no chamado ME. Este fato se deu através do convite para assumir a Secretaria Geral do Grêmio Estudantil Inácio Montanha (POA). Em seguida, por conta dessa realidade, passo a militar no âmbito Estadual da Política Estudantil, na Equipe da UGES. Paralelamente, na Capital, atuava fazendo oposição à direção da UMESPA, composta por estudantes de uma linha a mais retrógrado do ME. Muitos, jovens de bom caráter, ingênuos e alienados. Mas, outros, quase todos já com mais idade, corruptos e/ou mal intencionados. Ainda hoje, infelizmente, sobra resquício proveniente desta realidade na política partidária gaúcha. Pois bem, em seguida entrávamos no ano de 1961 e com ele advinha um fato político da maior importância histórica: O Movimento pela Legalidade. O “contiúdo” - como diria o nosso velho Caudilho - democrático e legalista deste movimento de imediato gerou a adesão concreta e ativa da UGES; e também da UBES e da UNE (que aqui instalou sua sede provisória em apoio à Legalidade). E é evidente que os dirigentes da UMESPA não estavam lá. Mas, como era de se esperar, estiveram ativos e insidiosos ao lado dos civis e militares que implantaram a ditadura, 3 anos após, em 1964. Inclusive alcaguetando e influindo diretamente na expedição de ordens de prisão pelo DOPS - de abominável memória - contra ex-opositores, entre os quais me encontrava. Éramos, à época, militantes de um expressivo núcleo político e ideológico, com fortes raízes em todo o Estado e no País. Constituíamos o chamado grupo da Esquerda Cristã do setor estudantil secundarista. Lutamos e contribuímos, ainda que modestamente, na vitória da Legalidade contra os golpistas de plantão de ontem e de sempre. Imagina a força de motivação que isso exerceu na emoção e na razão daqueles meninos idealistas. Tínhamos, em média, aproximadamente 18 anos. Eu havia completado 17 anos um pouco antes. Em julho de 63 fui credenciado pelo Grêmio Estudantil Inácio Montanha para o Congresso Estadual da UGES, em Passo Fundo. Lá fui consagrado como um dos diversos líderes de expressão Estadual. Onde pontificavam alguns dos que estiveram até bem pouco ou ainda estão aí no cenário político. Desses, são raros os que se salvaram e honraram autenticamente seus ideais. Dos naufragados, alguns, discricionários e canalhas como então, mas que pelo menos continuaram do mesmo lado e cresceram com o advento da ditadura, a partir de 1964. Outros, muito mais canalhas ainda, porquê de apregoadores de um “paredón” retórico, travestidos que eram de guerrilheiros da verborreia, pontificaram ou ainda estão pontificando no que há de mais reacionário da Política Partidária Gaúcha, pousando muitos de defensores do neoliberalismo. Fica difícil atualmente ao cidadão comum separar os que são herdeiros da ditadura e os convertidos ao neoliberalismo, de uma certa esquerda que se confunde e se amalgama nesta geléia geral com uma performance de causar inveja aos mais retrógrados e corruptos.

Quanto ao trabalho, até um período inicial da vigência da ditadura nem cogitava nesta hipótese. . Nesta época estive, junto com outro companheiro, foragido por um curto período. Então, preocupava-me - neste primeiro e breve momento - exclusivamente com a minha liberdade individual e a do companheiro foragido comigo, e com a nossa segurança. Preocupação que, obviamente era solidária e recíproca. Num segundo momento, ainda completamente sem rumo - como a grande maioria -, tentava por vários meios achar um jeito de continuar lutando pelos meus ideais. Uma dessas tentativas foi integrar um incipiente - e efêmero - grupo de 11, do qual participou pelo menos um dos companheiros que foram posteriormente presos e torturados brutalmente pela repressão. Mas tinha medo. Muito medo. Pois estes canalhas - que ainda hoje estão aí, leve, livres e soltos - se nos pegassem, fariam, no mínimo, o que fizeram com o companheiro Índio Vargas, que é aquele a que faço referência. E como fizeram com tantos outros militantes. Muitos deles assassinados, sem que até hoje suas famílias possam sepultá-los humana e respeitosamente, porque estes assassinos deram sumiço em seus cadáveres.

RETORNO À VIDA LÁ FORA, PROIBIÇÃO DE TRABALHAR, E POESIA

Depois, emergir para a vida “lá fora”, confesso, para mim foi um drama cruel. Trago sequelas emocionais até hoje. O confronto com a “nova” realidade gerava, além do medo apavorante, a dor insuportável da frustração em ver os ideais cultivados com tanto amor, tanta convicção, pisoteados pelas patas dos ditadores e seus sequazes. É muito difícil, se não impossível, a quem não estava lá - com 20 anos de vida e de sonhos - avaliar o que isso significou na minha vida e na emoção de muitas centenas de s jovens por este país à fora. Do ponto de vista prático, estava precisando com urgência trabalhar, mas sendo proibido pela ditadura de fazê-lo. Pois não podia ter acesso ao odioso “Atestado Ideológico”, exigido para a obtenção de todo e qualquer emprego, mesmo no setor privado (crime que hoje, como tantas crueldades da ditadura, caiu na vala comum do esquecimento). Perdi emprego por conta disso. Inclusive, em um deles, na Esso, que era, na época, o que se chamava de um “empregão”. Temeroso de que o pior pudesse acontecer, achei mais seguro não me apresentar para a admissão a uma excelente vaga de vendedor, após aprovado em 2º. lugar (3 vagas), por não dispor daquele abominável “documento”. Não lembro se à época eu ainda respondia a 3 IPMs, ou se 1 deles já havia se transformado em processo na Justiça Militar. Por conta disso, também abandonei o colégio. Estava no terceiro mês do 1º. Clássico e quando voltei à vida cá fora não suportei ser aluno daqueles que tinham, covarde e vergonhosamente, denunciado seus colegas. E aí lembro - e rendo homenagem - de professoras e professores punidos com a cassação (perda dos direitos de trabalhar, lecionar). Eram profissionais da mais alta qualidade, do status de um Joaquim José Felizardo, de quem me orgulho de ter sido aluno. Isso, para citar um, apenas, dentre inúmeros, como exemplo. Assim é que me tornei um autodidata. A Poesia, então, ficou por um longo período em recesso como atividade precípua. Hoje penso que era uma maneira, inconsciente, de não trazer para a poética o ódio e a profunda amargura que me atormentavam. Um tempo de decantação, eu diria olhando com olhar de hoje. Embora tenha um Poema emblemático daquela época que aborda a questão poeticamente. O que vale dizer, sem incorrer no tentador caminho panfletário. Lá, entre outros versos, lembro-me, aqui, destes que expressam bem o que acabo de afirmar: “Carrego minha amargura / como quem leva uma flor. / Ela é o único fermento / que existe dentro de mim...”

OS AMIGOS, ENTÃO, ERAM COMPANHEIROS

À época todos éramos companheiros. E não era apenas um simples modo de tratamento. Ou (cruzes, como pode?!) um costume de linguagem, como percebo hoje. Ouço indivíduos outrora respeitáveis tratando por companheiro seus algozes de ontem, ou gente a estes associados. Havia uma emoção quase sagrada que sentíamos ao nos tratar sempre assim. Embora, creio, raros soubessem, traduzíamos com esta sensação o espírito, a quintessência mesmo deste vocábulo para as nossas vidas. Pois é sabido que ele se origina, nas suas raízes mais anteriores do latim vulgar, da conjunção de outros dois - que bem explica o sagrado de que te falei - “cum” + “panis”. E assim é que agíamos, dividindo, literalmente, com amor e puro despojamento, o pouco pão de que na militância dispúnhamos. Depois, passado o tsunami da ditadura, veio a dor - quase tão insuportável - de ver que além dos que tombaram covardemente assassinados, muitos tombaram sem armas e luta, desferindo um tiro fatal nos seus ideais. Ou talvez melhor seria dizer, no que supunham ou mistificavam ser seus ideais. Restaram poucos. Muito poucos. E aí, - com a força recíproca desses poucos - foi tratar de reconstruir a vida e construir novas amizades. Que, neste aspecto, sem dúvida, sinto-me um privilegiado. Sem amigos e o meu amado filhão, que é um deles, mais a Poesia, amigo Sidnei, eu com toda a certeza já há muito teria chamado o garçom e pedido para passar a régua... Mas construir amizades, entendo que há muito faz parte do meu cotidiano exercício poético. Embora, na amizade, como na Poesia, mantenha a mesma atitude visceral. Para o bem ou para o mal...

NAMORADAS. AS MÃES CONFIAVAM AS SUAS FILHAS AOS NOSSOS CUIDADOS, AÍ, JÁ VIU...

Em relação aos relacionamentos amorosos, fui tímido e fugidio. Entre outras razões, porque a convivência feminina restringia-se ao universo das militantes. E aí, como boa parte de nós, eu era imbuído de um sentimento de sincera e platônica irmandade pelas companheiras de ideal. Tanto que muitas das mães só permitiam que elas viajassem para Congressos e Seminários se um de nós, os que se haviam tornado amigos mais íntimos da família, assumissem a responsabilidade da companhia e do zelo pelas suas filhas. Felizmente, sempre estive dentre estes. Agíamos como leias cães de guarda. Isto era belamente gratificante. Hoje lembro comovido desses episódios que nos engrandeciam como seres humanos. A isso se somaram outros fatores e acontecimentos no próprio Movimento Estudantil que me levaram ainda mais a priorizar a militância do que a desfrutar de possíveis namoros. E, confesso que ainda hoje, além de uma timidez bem disfarçada, conservo esta visão meio mística e sagrada da mulher como um ente a ser protegido.

ESCREVINHAÇÕES, AMIGOS E AMORES, TRABALHO.

Durante o período de militância do ME parte da minha produção poética tendeu a incorporar a temática da época, incluindo a forma e o conteúdo panfletário. É uma Poesia datada, que privilegiava uma proposta militante. Compreensível tê-la feito pelas razões do apelo daquele momento histórico (a chamada Poesia de protesto, pensada para Jograis de CPC, congressos, comícios, etc.). O que não a qualifica enquanto este gênero literário, antes evidencia uma óbvia imaturidade no fazer poético. Desta época lembro de alguns fragmentos de versos que testemunham esta realidade: “O povo cansou de ancetres grã-finos / com medalhas ao peito / e semblantes equinos. /... E agora, cansado, / lutando nas ruas / de arma na mão,/ fará ser bem sua / a Revolução.” Antes do golpe civil/militar eu passei a integrar o Projeto de Alfabetização Paulo Freire, coordenando esta área de atividade educacional, cultural e política da UGES. Em função disso estive em Florianópolis, na Praia do Pântano do Sul, alfabetizando Pescadores (uma das razões alegadas pelos ditadores para o meu enquadramento num dos IPMs). Lá, juntamente com um companheiro catarinense de nome Hamiltom, escrevi e dirigi a peça “O MAR É DOS PESCADORES”. Era uma história fundamentada na realidade local de então, com cenário e linguagem incorporados à criação e ao texto, que apresentamos aos próprios integrantes daquela realidade. O resultado é indescritível em termos do que foi a emoção daquela comunidade identificando-se com a narrativa e participando; interferindo, quer solidariamente, quer em oposição aos fatos, de forma contundente e até mesmo agressiva. Quanto aos amigos, companheiros de então, restaram poucos. A maioria ou disperso país a fora, ou tendo assumido outras escolhas. Os tais que tombaram sem levar um tiro. Já quanto aos amores é uma história muito longa, bastante agitada, que inclui finalmente 4 casamentos. Os 3 primeiros bastante efêmeros, o terceiro inclusive com a morte da companheira. O último foi o mais estável, durou quase 20 anos e dele tenho o meu único e querido filhão. E já se vão mais de 5 anos de separação. Quanto ao trabalho, entre múltiplas atividades, o mais significativo foi ter tido 3 Empresas do ramo de Propaganda e Marketing, e o bar Encontro. Um lugar emblemático no período de 1977/78. Na verdade, era mais conhecido como a “Rua do Encontro”, ou o Bar do Cirquinho, que ficou famoso em Porto Alegre pela sua ousadia e bom gosto em termos de arte. Apresentávamos tudo o que a Censura proibia, embora tivéssemos que mostrar semanalmente a programação. A que submetíamos à Censura era água com açúcar, Roberto Carlos e por aí. Mas quando abria a casa, à noite, só se ouvia Chico, Vitor Martins e Ivan Lins, Aldir Blanc e João Bosco e outros tantos dessa qualidade. Isso, afora os bons e inúmeros compositores e instrumentistas locais, e as intérpretes do nível de uma Graça Maglianni, Loma, Lúcia Helena, Maria Helena, minhas queridas amigas,entre outras e outros. Seu criador e fundador era o famoso Pernambuco, meu amigo, de quem fui um sócio simbólico, inicialmente. Depois, por proposta do próprio Pernambuco, assumi o controle da casa e repassei uma parte da sociedade para 2 outros amigos da época. Mais lá no futuro tive uma Indústria de Bombas Hidráulicas para a pequena agricultura, entre outras aplicações de importância para as atividades micro e média na zona rural e naval. Produto de mais este grande sonho hoje sou um cidadão literalmente falido. Quanto à Poesia, e a literatura de um modo geral, há muito voltaram a fazer parte da minha atuação permanente. Quer escrevendo - e o faço madrugada a dentro - quer preparando e ensaiando recitais, quer me apresentando em saraus juntamente com as Poetas e Poetas, cantores e cantoras, compositores e músicos que integram um grande grupo de amigos. Aí incluído o Grupo Águia (AmiGos Unidos Incentivando as Artes).


3-Sei que moraste no Recife e escreveste poemas por lá. Em quais outros lugares passou ou viveu o Poeta Andarilho?

No Recife escrevi um dos Poemas que considero bastante emblemático do meu trabalho: Bicho Homem. Diz muito de mim. Nesta ocasião estava hospedado, em trânsito de Olinda para Recife, na casa do Poeta Marcelo Mário de Melo, que foi preso político, torturado, e que conheci participando ativamente no movimento poético daquela bela cidade. Isto na verdade ocorre meses depois de eu haver feito uma parada temporária em Salvador (na SBPC de 1981). Eu vinha de Florianópolis, viajando com um grande amigo, onde estava radicado e tinha uma atuação bastante intensa como Poeta; tendo lá naquela bela cidade, inclusive, editado um Folhetim intitulado “Retratando Florianópolis”. De Salvador eu segui viagem rumo a um Encontro de Poetas em Olinda. Agora, apenas eu e mais uma mochila e uma sacola (presenteadas por um amigo quando passei pelo RJ) com ninharias indispensáveis, meus Folhetins e uma máquina de escrever portátil, presente dos amigos de Floripa. Aquele era de certa forma um evento preparatório do Encontro Nacional de Escritores Independentes, ocorrido logo em seguida em Fortaleza, no Ceará, para onde me dirigia. Foi neste Encontro que, contatado pela Poeta e Escritora Leila Míccolis e pela filha - cujo nome esqueço agora - do escritor e acadêmico Afrânio Coutinho, tive meu nome incluído na Enciclopédia de Literatura Brasileira, cuja autoria é dele e J. Galante de Sousa, hoje já na segunda edição. Também por ocasião deste evento fui escolhido um dos 3 integrantes da Coordenação Nacional do Movimento de Escritores Independentes. Então, de certa maneira em função disso, e também porque estava no Nordeste para conhecer a cultura local e trabalhar com minha Poesia, desfrutei da oportunidade de vivenciar diversos Festivais e Encontros de Cultura Popular por aquela região deste país, culturalmente tão diversa e tão rica. Entre os eventos mais importantes destacaria os da cidade de Campina Grande (Cultura Popular), na Paraíba; Penedo (Cinema e paralelamente Cultura Popular), em Alagoas; e São Cristóvão (Cultura Popular), em Sergipe. Afora ter vivenciado manifestações culturais de grupos e pessoas isoladamente, ou interagido direta ou indiretamente com personagens históricos da nossa cultura. Foi o caso de Fortaleza onde ouvi histórias do famoso Lampião, contadas pelo neto de uma fazendeira que era coiteira do seu bando. Posteriormente, em 1982, retornei lá, quando fui convidado pelo meu amigo, Jornalista Lauro Hagemann - então Presidente do Sindicato dos Jornalista do RS - para fazer um recital no “Congresso Nacional de Jornalistas” que acontecia em Fortaleza. Na ocasião tive a honra de dividir a Programação Cultural do Congresso com o mestre, singelo e grandioso, Patativa do Assaré, a quem já conhecia pessoalmente. Na estada anterior naquela capital havia sido apresentado a ele pelo seu compadre e meu amigo, Poeta e cineasta Rosemberg Cariri. Já em Aracaju - onde fui um dos editores do Jornal URGIA - tive a rara felicidade de conhecer ninguém menos do que a filha e a neta do próprio Capitão Virgolino Ferreira, o Lampião. E, embora - para mim - não tão emocionante quanto, também pude entrevistar o famoso Luiz Gonzaga para o referido jornal. Em Olinda convivi e me apresentei em eventos públicos com Poetas e compositores então desconhecidos aqui no Sul, tais como Bráulio Tavares e Lenine. Teriam ainda histórias de Maceió e Salvador, mas aí me estenderia muito além da tua paciência e da paciência do teu Público. Em diversas destas cidades - ou em quase todas elas, não lembro - escrevi Poesias, muitas delas extraviadas ou perdidas em algum canto ignoto da minha vida, e algumas registradas em um Folhetim intitulado “De Salvador à Olinda Com Muito Mais Amor Ainda”. Em todas estas cidades eu trabalhava fazendo recitais, quer em Universidades, ou Bares, Praças, Feiras Públicas e Centros de Cultura Popular. Em Olinda cheguei a formar um grupo com Poetas, Músicos, uma Atriz de Recife que acabara de ser premiada com um Prêmio que se equivalia ao nosso Açorianos, e mais um contra-regra, também do movimento teatral de Recife. Com este grupo - do qual tenho profunda saudade e comoventes recordações - fazia recitais, passando chapéu e vendendo meus Folhetins para dividir o resultado arrecadado proporcionalmente entre todos. Nesta época dava pra pagar pensão, comer e tomar alguma cervejinha, embora em outras fases a barra tenha sido de arrepiar. Mesmo assim, pensando em termos de hoje - e aqui no Sul, sobretudo - acho que não daria pra comprar nem uma dose de cicuta pra matar a fome de forma definitiva, né? (risos) É difícil uma dessas cidades em que eu não tenha uma história densa em beleza e calor humano pra contar. E algumas até bastante perigosas com risco de liberdade - lá a ditadura ainda tinha força - e outras mesmo com risco de morte devido às circunstâncias inerentes à forma nem sempre segura de viajar, muitas vezes dormindo em condições impróprias, pedindo carona em lugares ermos e/ou pegando carona com desconhecidos. Nesses momentos vivenciei também exemplos de solidariedade humana os mais belos e comoventes. É o outro e surpreendente lado de todas as moedas...


4- Como foi a tua experiência de letrista de escola de samba em Porto Alegre?

Olha, meu amigo, aí tu me levas a viajar por um dos períodos mais densos da minha vida, se pensarmos no binômio tempo e intensidade. Tudo o que eu disser é muito pouco para descrever a emoção de ver o povão de pé, nas arquibancadas, cantando a tua letra do samba de enredo cuja música era de autoria do parceiro Ivaldo Roque, já falecido, aplaudindo entusiasticamente, aos gritos de “JÁ GANHOU!” Jamais esquecerei! Eu tinha assumido a Direção de Carnaval da Academia de Samba Praiana a convite do então Presidente, também falecido, meu amigo Ernandes do Amaral. Na ocasião eu era sócio e diretor da Promerc Propaganda e tinha uma forte relação com integrantes da área cultural, até mesmo pela condição de ser Poeta. Muito por esses 2 fatores, acredito, deveu-se o convite recebido. Pois bem, quando assumi havia passado o tumultuo característico de um pós-Carnaval, o de 1971, e a Escola estava naquela fase de buscar um tema para o enredo do Carnaval do ano seguinte. Os assuntos centrais em pauta não me empolgavam em termos de Cultura Popular. E esta era a minha proposta, e era tão somente em razão da qual eu aceitara o convite de ser Diretor de Carnaval de uma das entidades carnavalescas mais importantes e famosas de Porto Alegre daquela época. Foi quando apresentei à Diretoria da Escola a sugestão de levarmos para o asfalto no Carnaval de 1972 um tema que tivesse como personagem central o popular e emblemático babalorixá Joãozinho da Goméia, falecido em março daquele ano de 1971. Após muitas e empolgadas discussões em diversas reuniões, o tema acabou contagiando a todos e foi aprovado por unanimidade. Daí, o passo seguinte era quem comporia o samba-enredo. E, paralelamente, quem iria criar e desenvolver o enredo, com a coreografia e todas as etapas pertinentes a este complexo e fundamental aspecto da apresentação no asfalto de uma Escola de Samba no Carnaval. Não saberia dizer exatamente como fui o escolhido para ser o compositor letrista e nem como se deu este casamento com o grande violonista e compositor Ivaldo Roque. Eu e ele já nos conhecíamos através do Grupo Canta Povo, do qual ele era integrante, e ambos éramos da Praiana. Quem indicou quem, e quem escolheu quem para parceiro eu confesso não lembro mais. Da parte que me lembro é que uma vez definido o assunto eu fiz questão de também participar da construção do enredo. Apesar de nenhuma experiência em fazer Carnaval, eu tinha já alguma vivência de palco em recitais e breve passagem pelo teatro, ao qual voltei a posteriori. Além disso dispunha de uma visão inovadora e criativa forjada na atuação em Propaganda como profissional de planejamento e criação, o que levei para o Carnaval e para o asfalto. Claro está que eu era coadjuvante desta área de enredo e coreografia. Embora tenha criado quadros pontuais que foram decisivos e emblemáticos para o conjunto. O coordenador e titular de toda a organização de coreografia era um profundo conhecedor do assunto. Ninguém menos do que o mestre e meu saudoso amigo Zé Grande, que junto com o então Presidente e muitos outros praianas havia sido fundador da Escola. E aqui acredito ser de cabal importância um registro histórico para o Carnaval de Porto Alegre, e penso que não exagero em dizer, do Brasil. Pela primeira e - que eu saiba - única vez, levou-se para o asfalto, como parte vital da coreografia e por sugestão minha, uma completa iluminação de teatro. Acredite, uma inovação impensável até então, com spots e canhões colocados estrategicamente na área de chegada ao Palanque Oficial que, à época, era onde se postava a Comissão Julgadora. E para operar com maestria e criatividade esta magia da luz, fui buscar no Teatro São Pedro o meu amigo e bambambã da iluminação, de então, o também saudoso Luizinho. E aí tu deves estar te perguntando, mas como iluminar o que já é feericamente iluminado, jogar jatos de luz sobre uma iluminação que era o máximo que se dispunha na época para iluminação do asfalto? Ai, meu amigo, veio uma das partes mais difíceis, talvez, desta odisséia. Convencer as autoridades dos chamados órgãos competentes a desligarem as luzes num exato e determinado momento exigido pela coreografia, e só voltarem a acendê-las também num exato e determinado momento posterior. Tudo isso dentro do tempo de que precisávamos para levar a parte eletrizante e surpreendente da coreografia ao ar. Nada poderia dar errado em termos de cronometragem, pois era tudo controlado em outro lugar muitíssimo distante dali. Quando as luzes se apagaram, ouviu-se um AHHH!!! da multidão. Não demos tempo para iniciar os protestos que seriam inevitáveis e compreensíveis se fosse um acidente. De pronto lançamos o primeiro jato de um canhão sobre o grande conhecedor da cultura religiosa negra e belo dançarino de candomblé, o meu bom amigo Boréu - que aqui faço questão de homenagear - o qual, devidamente ensaiado por mim para cumprir o quadro que eu havia criado, lançou no ar um poderoso grito estendido, derramado: “-Joooãããoo!!! João da Goméia!!! A Praiana te saúda e pede passagem!!!” (choro e me arrepio ao lembrar da incontrolável emoção que foi este momento apoteótico). Na sequência caía um spot sobre ele que com plasticidade e ritmo o acompanhava na sua belíssima dança de esplendorosa evolução coreográfica. Paralelamente, outros spots iam chamando o conjunto de instrumentos de frente compostos por diversos berimbaus e atabaques. Depois entravam as filhas de santo dançando e carregando pombos brancos numa das mãos e acompanhando a coreografia principal, a fantástica dança do grande mestre Boréu. Os canhões e spots passeavam por este conjunto num bailado de luzes previamente ensaiado e enriquecido pela técnica e criatividade daquele excelente iluminador. Até que todos os canhões e spots se apagaram e as luzes do asfalto voltaram a acender. Deu exatamente como o programado, em cima da hora prevista. Não preciso te dizer que nesta hora o povão simplesmente delirava. As arquibancadas aplaudiam freneticamente e todo mundo cantava junto o samba-enredo, Vida e Glória de Joãozinho da Goméia. Eu integrava a ala de berimbaus e estava quase a ponto de explodir de tanta emoção. Infelizmente, tanto a Praiana como a nossa imprensa parecem haver esquecido deste momento de glória do nosso Carnaval.


5- Tens um livro de título caprichado, Cantigas para a Senhora do Olhar Arregalado, de 1981. Em que outras publicações, antologias, periódicos a gente poderia encontrar poemas teus?

Na verdade este é um Folhetim. Muito bem produzido graficamente, mas não é um livro. A capa é de autoria de um grande amigo e parceiro de dupla de criação nos tempos de Propaganda, o Lever, um ilustrador dos dois mais criativos e qualificados que já conheci e com quem tive a honra de trabalhar. A produção gráfica e impressão, super-caprichosa e marca registrada de quem fez, foi obra - e presente - de outro grande amigo, o Irgeu Menegon. Mais conhecido no meio das artes gráficas por Shimith, proprietário da Editora Proletra. A data de 1981, que aliás figura também lá na Enciclopédia Brasileira de Literatura, é porque eles ao editar a Enciclopédia confundiram a data da entrevista que fizeram comigo lá em Fortaleza com a de edição do Folhetim. Na verdade ele foi editado em 1977 ou 78, não recordo exatamente. E tem um detalhe em relação ao título que gostaria de acrescentar. Há, na capa, entre parênteses, um subtítulo muito importante: “(Ou: De como a negação do amor tem a ver com a ditadura.)”. E aí, no subtítulo, estava mais uma razão - entre outras - para eu sofrer alguns dos sustos que passei lá no Nordeste por conta da repressão política. À fora este trabalho, tenho os 2 outros já citados em pergunta anterior, e participação em livros de concursos onde me classifiquei. De significativos, que lembre,1 deles como contista, num Concurso da UFSC, e outro no Livro “Os Poetas do Vinho”, do 3º. Concurso Nacional de Poesia Sobre o Vinho / 1986 (Universidade de Caxias do Sul e UVIBRA/FECOVINHO/AGAVI) por cuja classificação fui “agraciado” com 500 (quinhentas) garrafas de vinho. Depois tem publicações diversas neste mundo eletrônico, ao qual sou bastante arredio, um ogro da internet, mas os amigos - as e os Poetas, sobretudo - têm tido a delicadeza de publicar alguns trabalhos meus. Existe também outros Poemas publicados por obra do meu amigo e irmão de lutas políticas, Luiz Alberto Sanz, o Nenê, que é um Jornalista carioca que mexeu com cinema, e foi dos inúmeros exilados políticos por obra da ditadura. Aí, nestes casos, teria que clicar lá no Google, em Flávio Barreto Leite, ou Barreto Poeta, ou Poeta Barreto, eu não sei exatamente, só sei que lá tem. Não é nem Flávio Barreto, apenas (que sei haver um), nem Flávio Augusto Barreto Leite, que é um médico.Quanto aos blogs não sei se as edições permanecem no ar, né? São diversos. Aí tu e os teus leitores afeitos a estas modernidades é que sabem. Eu só tenho e-mail, que prefiro chamar de emaile. E acho um grande avanço para quem já fez 53 anos. De Poesia, né? Mas este “pequeno detalhe” tu não precisas publicar. (risos) Fora isso, tenho um acervo grande, umas 6 centenas ou mais, talvez, de Poesias nunca publicadas e que estão na boca de espera do im/possível editor.(risos) Organizados são 6 livros, o resto é uma imensa bagunça literária de Poesias, Contos e inúmeros capítulos de Romances literalmente jogados e esparramados pelo interior da minha minúscula morada. A sair, não sei quando, o micro livrinho - tamanho de uma caixa de fósforos, menor do que estas maiores e maior do que as menores - intitulado “100 Poemas Mínimos”, edição do autor, cujo boneco gráfico está pronto desde dezembro de 2009; uma gracinha, como diria aquela nossa intelectual da TV. E embora não contenha palavras vãs, está à espera da vana verba para a publicação. (risos) Quem sabe um dia... Agora, de certeza, tem uma plaquete (livreto tamanho de cartão postal, aproximadamente), que está em fase final de edição. São 13 Poemas escolhidos a dedo pelos editores, meus queridíssimos amigos, a poeta Sandra Santos e o Poeta Alexandre Brito. Quando sair, vai ter auê e tudo. Creio que será lançado junto com a plaquete do meu amigo e irmão, Poeta Renato Mattos Motta. Aí te aviso. Ah, o título, dado pelos editores é Verve.


6- Tu tens um modo marcante de dizer teus poemas, sempre num volume de voz bastante alto, o que causa um impacto. Pretendes desestabelecer o ouvinte, tirando-o do seu (in)confortável mundinho privado?

Diria que não há a intenção precípua. Mas, sem dúvida, acho que é a consequência notável mais imediata. Porém, a razão fundamental é de duas ordens. Uma porque entendo que deva tentar passar ao Público a intencionalidade do meu verso. Que tem esta característica visceral. E embora alguns cânones deplorem esta condição e a neguem como elemento possível de se incorporar à Poesia, eu estou a me lixar para os que primam pelas encasteladas sabedorias apenas acadêmicas. E antes que estes tais se assanhem com ferocidade, digo que não sou torpe em negar o saber acadêmico. Que se leia com acuidade, pois, a minha afirmação. Mas, nesse particular, prefiro louvar-me na realidade, onde a vida acontece em carne e osso, entre lágrimas e risos. Pois é uma manifestação espontânea que sempre aparece na boca de muitos dos que vêm me cumprimentar após uma apresentação, o louvor à característica visceral do meu trabalho. Entendo que esta é uma marca registrada, como, em outras palavras, tu bem observas. Pois que é comum não só nos meus versos de temática social e política. Ocorre mesmo quando o tema é humor, erotismo e/ou amor, embora ao dizê-los a modulação aí ganhe a tonalidade da intenção apropriada, é óbvio. Outra razão é porque a Poesia há muito não é propriamente menina dos olhos do Público em geral. E menos ainda hoje em que vivemos na época midiática do batidão, dos e falsos pagodes, falsos sertanejos, do roquinho indigente de músicas patéticas e letras deploráveis; do sai-no-pau, soca-na-bunda, que é a verborreia recorrente desses e dessas mirians quebra-barraco da vida. Aí, num Público desabituado e - vou valer-me de um vocábulo antigo, de uso do velho meu pai -, sem o necessário traquejo para a audição de Poemas, carece que se quebre o pau, no outro e no bom sentido, né?(risos). Que é para despertar, literalmente, a quem sequer pretendia nos ver. Ouvir, então... E aí, sim, entendo que a desestabilização se dá. Por consequência da condição visceral, intrínseca ao verso e autêntica. E da verve, que é extrínseca e funcional, e que é quando não apenas o Poeta atua, mas se manifesta também o ator. E me ocorre que é também a maneira de passar uma unidade interativa entre o criador e a criatura. Fatores que para muitos, e a maioria daqueles expertos a que me referi aí incluídos, são elementos totalmente dissociados e não dialéticos. O que, evidentemente, nego; e ao que me contraponho também de forma visceral. (risos)


7- Foste pré-selecionado para o Prêmio SESC de Literatura de 2009 com o livro Os 3 meninos & Exorcismo Literário. Poderias nos dizer alguma coisa sobre esse projeto?

FUI???!!! Tá falando sério, amigo Sidnei???!!! Pois, acredite, acabo de sabê-lo neste exato momento por teu intermédio... Este fato dá bem uma mostra de como se lida com a literatura neste país. Se duas instituições do porte de um SESC e da Editora RECORD, que é parceira no referido Projeto, tratam assim quem - segundo tua informação agora - fica entre os 9 peneirados dos 57 rigorosamente selecionados imagina o que esperar de quem não é do ramo, então? E olha que tinha aproximadamente 700 concorrentes - segundo o dado que obtive na ocasião, depois de encerradas as inscrições -, em todo o território nacional. Só gostaria de saber quantos escritores gaúchos estão entre os 57. Claro está que esta atitude de descaso não depõe contra a importância deste Concurso que é nacional e que edita os vencedores através dessa renomada Editora. Suponho que ao cumprirem todos os trâmites pertinentes, todos os envolvidos ajam com o máximo critério profissional, de absoluta isenção. Eu próprio - que se faça justiça de público aqui - fui alvo da maior atenção e cuidado por parte da responsável pelo Concurso aqui no RS, Senhora Magali, quando me dirigi ao SESC local devido a um grave problema que tinha identificado nos meus originais já anteriormente entregues. Mas, mudando o foco sem mudar de assunto, não sei se tu tinhas conhecimento desse meu outro gênero de trabalho com as palavras. Além de contos, em cujo gênero já tenho um pequeno acervo, que além do livro do Concurso renderia mais uns 2 outros, arrisco-me em 3 romances em vias de conclusão. Um deles há mais de 30 anos...(risos)


8- O que é poesia pra ti, para que botamos poemas no mundo?

Importante que o teu leitor perceba que a pergunta, nos seus dois momentos, é restrita ao meu conceito. E nem poderia ser diferente. Cada Poeta e cada teórico de literatura há de ter o seu a respeito do conteúdo definidor de Poesia e da razão de poetar. E serão muito provavelmente distintos e múltiplos tais conceitos. Desconheço, do ponto de vista especulativo e não técnico, óbvio, consenso sobre o assunto. No frigir dos ovos, penso, vão permanecendo conceitos pelo que e quanto de abrangentes o são, e de pertinência apresentam. Pois, acredito ser esta a condição que confere universalidade a toda e qualquer especulação. No meu entender, portanto - sujeito às chuvas e tsunamis provocados pelo confronto com os demais e diversos entendimentos - a Poesia é a linguagem artística que, a partir da conjugação da palavra com e através da imagem - objetiva e subjetivamente, portanto -, o ritmo e a estética, como elementos essenciais e indissociáveis, consegue propor à leitora e ao leitor deter-se sobre a realidade com um outro olhar distinto daquele olhar cotidiano, na mais das vezes ligeiro e desatento. Um olhar aguçado, de sintonia mais fina, para muito além - e mais profundo - da palavra, apenas, e do objeto ou fenômeno que a palavra traduz. Isto é fundamental que fique bastante claro para quem lê e - sobretudo - para quem se atreve a fazer Poesia. Uma linguagem que, longe de mascarar a realidade ou tão somente retratá-la, muito antes consegue expressar suas cores e contornos mais interiores e sutis. Atribuindo-lhe subjetividade de conteúdo, e trazendo o subjetivo para a flor da pele desta realidade, sem desprezar nem confundir o objetivo, ao qual, por este intermédio, ressalta com suavidade ou delicadeza bruta. Dependendo do que e da razão de ser do verso, da estrofe e da Poesia no seu conjunto. E aí é importante salientar que o poético não se exerce somente com ou sobre o que é belo. Mas a linguagem sim há de sê-lo, necessariamente, para até mesmo na brutalidade do caos promover a contradição do belo, afim de que quem lê a Poesia possa sofrer o impacto benfazejo e instigante da poética. Ter, dessa maneira, seu olhar cooptado para olhar com sensibilidade - e aí reside o belo, independente de belo ser ou não o tema da Poesia - e cumplicidade para qualquer fenômeno ou objeto que ao humano diga respeito. Seja por lhe aguçar a beleza, seja por denunciar de forma aguda, mas bela, a ausência mesquinha e cruel dessa mesma beleza. Se não, a Poesia torna-se um exercício meramente estético. E a estética, em si mesma, não tem compromisso nem com a verdade e nem com o verdadeiro. Já a Poesia, não tenho dúvida de que tem sim este compromisso que, diga-se, lhe é inalienável e definidor. É o que lhe confere cerne e razão de ser. Embora saiba que esta afirmação possa provocar tsunamis exprobrantes por parte de muitos, ou mesmo de uma maioria. Sem descurar de que toda a arte - e a Poesia não foge dessa condição, portanto -, requer do seu realizador a pertinência no uso correto do seu ferramental e tem compromisso com a estética no seu sentido mais profundo de forma e conteúdo. Compromisso, enfim, com o belo, do como e do que faz. Ambos parte substancial e indissociável do ofício. Sem esta condição de extensão e profundidade eu diria que pode, sim, se fazer versos. Belos versos, até, no sentido meramente estético. Mas, Poesia, no meu entender, jamais. É como apenas pintar quadros e esculpir estátuas. A arte só o é quando manifestamente possui uma ânima que lhe é própria, intrínseca. E esta quem lhe confere é o artista, numa interação dialética à qual este carece ser para que aquela aconteça na sua plenitude de forma e conteúdo.

Quanto ao botar Poesia no mundo entendo que é também se exercer o ofício de construir pontes entre a realidade e o lúdico, sem, no entanto, pretender fazer do lúdico a máscara que sirva de disfarce da realidade. Antes, que seja sim este um meio de denúncia de que o belo, nele aí incorporadas todas as benesses objetivas e subjetivas da vida, é um prazer possível e é urgente acontecer. Para todos os humanos. Quer do ponto de vista da individualidade existencial, quer social e coletiva que, dialeticamente é, por conseguinte, também política. Portanto, construir tal ponte poética consiste em evidenciar que sem o belo - este integrado à realidade das não abstrações etéreas e hedonistas - a vida é torpe e cruel, porque individualista e egocêntrica. Entendo, pois, que - afora o conceito já exposto - não incorporar este contexto, conscientemente, na hora de botar no mundo o que se pretende seja uma Poesia, para mim, é tão sem sentido e alienado quanto botar um filho no mundo apenas querendo cumprir a função de procriar. Não discuto o direito que cada um tem de fazê-lo. O que me move é saber se cumpre a razão de ser da Poesia e da ou do Poeta. E se é ético dizer desses fazeres obras de arte.

Entrevista de Flávio Barreto Leite ao blogue Umbigo do Lago, agosto de 2010

POEMAS DE FLÁVIO BARRETO LEITE:

ENGANA/DOR

Tem uma unha
cravada
no meu peito
feito uma unha cravada
no peito
e não encontro
o jeito
de arrancá-la.
Ou, ao menos,
de estancar a dor.

Poetas,
os leitores ignoram,
têm um defeito:
falam de,
mas deploram
e sentem horror
à dor.
Por motivo assaz simplório:
Ninguém no mundo
domestica a dor
que lhe atinge
com palavrório.
Por mais perverso
ou singelo.
Por isso, caro leitor,
o poeta finge
não pertencer ao universo
da dor.
Apenas
ao do belo.


AMIGOS

Amigos,
na verdade,
são amantes,
namorados
que não tendo
a compartir
nem comprazer-se
com o sexo,
antes
aprofundam-se no nexo
(im)penitente
de ser(se)
o que se quer
e sendo-o,
sê-lo
simplesmente.
Para o que der
e vier.


BICHO-HOMEM

Meu partido
me quis máquina,
minha mulher
me quis macho,
minha mãe
me quis menino.
E assim,
cada qual pelo seu tino
foi traçando
o meu destino,
alheio a minha vontade.
Por isso nenhum entende
a razão quando se some
desse insípido convívio:
Eu não morri
pra querer lírios,
é outra a morte
que me come.
Descansem em paz
no delírio.
Prefiro meu desatino
de me saber
Bicho-Homem!

Recife, 1981.


CANÇÃO DA MINHA AMARGURA
..........Para a minha amiga Nika

O tempo cingiu o tempo
e levou nossa esperança,
foi-se o amor e a doçura,
restou a dor e a amargura;
restou medo e insegurança.
Carrego minha amargura
como quem leva uma flor,
ela é o único fermento
que existe dentro de mim.
Talvez o amargo que existe
amargue tanto o meu peito
que não chegue mais espaço
pra conter tanto amargor,
e rompa o cofre do peito
inundando toda a terra
em amargura e desamor.

Mas enquanto for de espera
o tempo em que se tempera
o preparo desta guerra,
que a vida seja bem clara,
amarga, fria e medida,
segundo sobre segundo,
a que não se esqueça nunca
a torpeza e crueldade
que nos reserva este mundo.

É preciso, amiga minha,
que haja a altivez do coqueiro
na nossa flora interior,
porque o vento é traiçoeiro
e forte com seu abraço.
Forte, e demolidor...

Porto Alegre, após o golpe de 64, recuperada de memória para esta entrevista pelo autor.

POEMAS DE FLÁVIO BARRETO LEITE

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