18 abril 2007

POESIA E ORALIDADE:

CARTA PARA UMA AMIGA ATRIZ

Fiquei pensando na tua preocupação com a leitura em voz alta, a interpretação do poema, quando muitas vezes ele não apresenta as devidas marcações, ou vem organizado em estrofes que simplesmente cortam o que vinha sendo dito, versos que se quebram no meio para só continuar na linha seguinte, etc, etc. A questão me pareceu interessante, e diz respeito a atores e poetas.

Acho que há quem escreva já para a oralidade e sua poesia fica bastaste marcada por isso. Castro Alves, por exemplo, já escrevia pensando em declamar (verbo apropriado para o período) para os grandes auditórios e as praças públicas, numa época sem equipamentos de som e amplificador. Esse estilo, uma qualidade em função dos seus objetivos e necessidades, hoje tem sido injustamente visto por alguns como um defeito, exatamente por abstrair as condições objetivas de então. Maiakóvski, com aquele estilo escadinha de arrumar os versos, fazia com que cada degrau fosse uma unidade fônica, para ser dita de uma só vez, e o fazia com o seu típico vozeirão em cima das máquinas das grandes fábricas, nos grandes teatros e nas assembléias russas para milhares de pessoas de uma só vez.

Já se a gente pensar num Mallarmè, distribuindo o verso espacialmente na página, ou na arte da caligrafia nos poemas do extremo oriente,
é outro papo, próprio do visual. Um Ferreira Gullar faz coisa parecida em livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz e outros, mas aí a questão parece não ser só de distribuir as palavras na página em branco (como quem desenha com plantas diferentes um canteiro), mas diz respeito ao ritmo, um ritmo que não é sonoro (pelo menos nesse aspecto da espacialização), mas visual, a gente vai de um final de verso ao ínício de outro e realiza uma trajetória com o olho, muitas vezes um zigue-zague, o que se perde inteiramente na oralidade, embora seja possível criar alguma correspondência através da maior ou menor velocidade da enunciação, de pausas, do gestus corpóreo, etc.

Cortam-se versos também em função do sentido, por suspense, para duplificar ou exponenciar o sentido de um verso para outro, em suma, por infinitas razões de sentido, o que nem sempre é simples de transpor para a oralidade sem outras perdas ou uma perda maior. Por exemplo, fazer uma pausa num verso ou estrofe que termina com a palavra "de" pode não surtir efeito nenhum no receptor e prejudicar a fruição do poema (nem sempre, minha argumentação não quer fechar nada, deixemos tudo em aberto), embora tal expediente possa funcionar e ter lá suas razões na leitura silenciosa, lenta e repetida, sempre cheia de vaivéns. Há, também, poetas que simplesmente estão distantes do verso como ele é costumeiramente entendido e o cortam, grosso modo, em qualquer lugar, o que, em função de um hábito arraigado pelos séculos, pode ser instigante. Quem? Gonçalo M. Tavares, por exemplo, no livro 1 e em outros.

É claro que os diferentes aspectos de um poema estão completamente entrelaçados, formam um todo indivisível que significa, apesar da eventual preponderância de um aspecto ou outro.

Em síntese, há poemas que levam em questão a oralidade e procuram demarcá-la o quanto possível e outros que não estão nem aí, embora (quase) todos sejam passíveis de verbalização. Muita coisa vai se perder de um veículo ou suporte para outro, e muita coisa vai ser acrescentada, como sabes melhor do que eu: entonação, expressão facial, gestual, etc. Todo poema dito em voz alta, seja imaginado ou não para a oralidade, vai ganhar a marca única de quem o diz. Daí que estamos diante de um mundo poético não regrado, aparentemente cheio de problemas, mas na realidade com múltiplas possibilidades criativas, tanto para a escrita como para a interpretação.

De quem gosta muito de te ouvir,

Sidnei


POESIA E INTERPRETAÇÃO

A interpretação oral é uma outra arte a partir da arte do poema, que necessariamente o modifica. O poema na página é espacial e oral ao mesmo tempo - quase sempre - e a interpretação têm suas próprias leis, precisando subverter aspectos poéticos não orais para benefício do próprio poema. Às vezes o autor mesmo sabe disso e o faz na leitura, outras vezes o faz sem perceber, inconscientemente. São duas coisas diferentes, o poema na página como mancha e o poema na voz de um ser humano particular.

Existem poemas sem página, como aqueles transmitidos pela tradição oral, e, eventualmente, experiências visuais mais totalizadoras, que excluem a possibilidade da leitura em voz alta.

A interpretação, mais complexa do que a simples emissão sonora,
é outra arte a partir da arte do poema do mesmo modo que um filme o é em relação a uma obra literária. Ou uma tradução em relação ao poema na língua de partida.

A interpretação é uma leitura - usando aqui o duplo significado de cada um dos termos.
 
Sidnei Schneider

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

belos textos mestre

13/3/13 13:28  

Postar um comentário

<< Home