JORNAL VAIA - CONTO "COMIDA"
Dispensou a criadagem, fizessem o que lhes desse na veneta, desde que estivessem a postos para a preparação do jantar, mas reteve Carlos, precisaria do carro. Sentia-se, assim, em melhores condições para vasculhar a cozinha, a despensa e a adega. Primeiro, abriu o freezer das carnes vermelhas, mas ter que assar alguma já era exigir demais de sua benevolência. No de frutos do mar, achou uma linda lagosta, isto sim, era o tipo de refeição que um faminto jamais esqueceria; colocou-a sobre o balcão. No de aves, localizou o peru reservado para a celebração de logo mais, os patos para alguma comida alemã, uma lebre que ali não deveria estar, as perdizes e marrecas das caçadas de Romano, e uma profusão de frangos; tudo, evidentemente, cru, à exceção de uma galinha caipira que fora congelada assada, e, intacta, esperava por dentes ávidos; separou-a. Da geladeira, colheu os escargots restantes do jantar francês.
A lagosta, claro, estava crua, mas alguma coisa essa gente também poderia fazer por si mesma; afinal, não os tinha visto ao redor do fogo, embaixo do viaduto, assando qualquer nesga num espeto recurvado? Na adega do porão, examinou vinhos franceses, italianos, portugueses, chilenos, mas se conteve, num assomo de lucidez, antes de visitar latitudes menos prováveis. Nada disso, não iria instrumentalizar a bebedeira de ninguém. Subiu para a área de serviço, e de um móvel embutido retirou um conjunto de sacolas, escolhendo uma que lhe trazia boas lembranças de Luxemburgo; eles mereciam, o dia era mesmo especial.
Lembrou-se, porém, que só comer não bastaria, fazia-se necessário algo que tornasse mais bonitas aquelas vidas isentas de sentido. Com um excesso de cuidados, como se pudesse ser flagrada a qualquer instante por alguém que, fora do seu conhecimento, estivesse habitando a casa, percorreu salas e ambientes até retirar da mesa do espelho do hall um ikebana comprado no dia anterior. Não importava que já se extinguira sua anunciada duração ritual de vinte e quatro horas; os mendigos não se preocupariam, à japonesa, com a eterna mudança propiciada pela passagem do tempo; se nem ela ligava para esses orientalismos, por que eles haveriam de se preocupar; continuava bonito, viçoso e colorido, apesar de uma pequena necrose tê-lo maculado durante a noite. O arranjo fazia-se de uma flor de única pétala, enorme, amarela, cravada pela haste na argila e disposta na horizontal; de um verde e frágil junquilho, que, desde a haste da flor amarela, apontava para o alto; e de um galho finíssimo, negro, resistente, encimado por um botão diminuto, débil, e também amarelo, que completava a filosófica tríade pendendo para dentro do conjunto.
Chamou o motorista, juntou os víveres, e saiu no automóvel cinza-metálico que acabara de chegar do porto de Rio Grande, presente de aniversário que lhe dera Romano, talvez para compensar sua inextinguível ausência, fosse pelos afazeres nas empresas durante a semana, pelas sádicas caçadas nos dias de descanso ou pelas malditas e constantes viagens ao exterior.
– Ande por aí, quero ver a paisagem – disse ao motorista, envergonhada de lhe confessar seu verdadeiro intento. Todavia, depois de algumas voltas, ordenou-lhe passar pela avenida Ipiranga, na pista mais próxima do bueiro central, onde mal se desprendia das margens o arroio Dilúvio, tal a quantidade de dejetos e esgotos que suportava. Não custou muito, percebeu uma movimentação embaixo de uma das pontes. Mandou Carlos estacionar a duas quadras, dentro do shopping, enquanto descia sem lhe revelar nada. Voltou a pé em direção à ponte, a última antes do gelatinoso arroio lançar-se no estuário do Guaíba, balouçando orgulhosa a sua caritativa sacola.
Do lado do viaduto, de onde subia a morrinha de uma fumaça esbranquiçada, gritou “oi moço”, mas não foi atendida. Desconfiou não houvesse ninguém em casa, mesmo assim, decidida, avançou uns passos pelo declive e repetiu o “oi moço”, apesar de ter diante de si uma mulher e dois homens. Sem saber o que dizer, arrependeu-se antes mesmo de qualquer contato, tão horríveis lhe pareceram os poucos dentes do homem negro, as nódoas de sujeira presas ao cabelo do homem ruivo, e as pernas abertas da mulher, sentada sobre uma pedra, deixando entrever o pano imundo que lhe servia de peça íntima. Para sair do constrangimento a que se impusera, ergueu a sacola luxemburguense e antecipou:
– Trouxe uns petiscos.
– Comida?! – arregalou os olhos o negro.
– É sim, e da melhor. Hoje é Ação de Graças, sabe, a festa norte-americana, e eu...
Olhou para dentro da sacola e retirou lépida o pote de escargots, alcançando-o. A mulher o tomou com repentino alvoroço, abriu-o, e pausadamente exclamou, entre decepcionada e compreensiva:
– Moça, a gente é pobre, mas nunca comeu caramujo.
– Talvez vocês não estejam habituados, é coisa fina, importada.
– Pode deixar aí – apressou-se o ruivo, pensando no seu cachorro. – Que mais que a senhora trouxe?
Temerosa de ofendê-los, retirou devagar a enorme lagosta:
– Ainda precisa ser preparada – sorriu amarelo.
Um dos homens a pegou, aproximou do nariz o fedentino animal, e, por uma educação atávica e esquecida, colocou-a sobre o banco de madeira. Teteka aligeirou-se e passou a mão na galinha, isso eles deveriam conhecer. A mulher da ponte apanhou com as duas mãos aquele coco congelado, sentiu o frio espinhar-lhe os dedos, e o deixou cair, o que fez que rolasse para o Dilúvio:
– Também não prestava. Olha só, tá boiando!
Esperançosa de que depois a fome os fizesse comer os escargots e preparar a lagosta, anunciou o ikebana com um sorriso nos lábios, uma flor nem o mais bruto dos seres recusaria.
– Tá bom, moça – falou o negro. – Mas na próxima a senhora vem com um bife no feijão-com-arroz, que a gente agradece.
Teteka retirou-se aborrecida. “Mal-educados e ignorantes.” Dirigindo-se ao shopping, contudo, já pensava de outra maneira. Contaria para a Gina, e para todos na festa da consulesa, sua grande ação de graças, e de como sentira preencher-se um vazio no seu peito enquanto assistia àquelas pessoas devorarem a carne dos caracóis iniciais e chorarem de agradecimento pelo que lhes proporcionara. Não, nada de baixo-astral, de ruim chegava a vida.
Embaixo da ponte, o homem ruivo chamou o seu cão e lhe atirou os escargots. O animal os farejou um a um e deu de lombo.
– Nem o Importante quis essa joça – disse.
– Se o caranguejo não fedesse tanto, eu até vendia pros hippie fazer artesanato – concluiu o negro, antes do arremesso para o meio do rio.
Sentaram-se em torno das pedras fumacentas, inconsoláveis. Gigante e avermelhado, o sol se punha atrás das ilhas do Guaíba, deixando um rastro dourado e ondulante sobre as águas. De mão em mão, passaram o arranjo floral, e, por teimosia ou desagravo, o comeram.
Sidnei Schneider, jornal VAIA, Porto Alegre, março 2007.
1 Comments:
Sidnei, em março, não lembro qual dia entrei no blog. Como disseste, até dezembro/2006 andava lento.Fico contente de ver os escritos nele, à medida que eu for lendo,digo algo.Abraços,Jorge Fróes
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