24 fevereiro 2008

CRUZ E SOUSA: NEGRO DIAMANTE


SIDNEI SCHNEIDER, publicado em 2003

A poética do Simbolismo, ao privilegiar o contorno e não a essência das coisas, não se constituía exatamente num meio privilegiado de apreensão da realidade, mas continuava o despreocupado culto da forma que presidia a estética parnasiana, desta vez através do cultivo do símbolo, das correspondências, da musicalidade e da troca da pretensa objetividade parnasiana pela busca do inefável. Apesar disso, a realidade rompeu a crosta teórica que supostamente guiava o movimento, bastando citar como exemplo as próprias Flores do Mal do pioneiro Charles Baudelaire (1821-1867), e, em especial, os poemas da seção Quadros Parisienses – o mesmo já não se poderia dizer da poesia de Stéphane Mallarmé (1842-1898), no aprofundamento, até os estertores, daquela poética. No Brasil, o fato de ser um negro filho de escravos a maior personalidade da escola simbolista acabou por gerar uma poesia que superou tais limitações estéticas: “Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz com que tu’alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura” (O Assinalado - Últimos Sonetos, US).

A monótona repetição de que Cruz e Sousa (1861-1898) era o poeta da cor branca, e que tinha, no fundo, o desejo de ser branco, após o ensaio do pesquisador francês Roger Bastide, dificultou a percepção do papel que sua poesia cumpriu, não só como expressão dos sofrimentos da população negra, mas também de combate:

ESCRAVOCRATAS

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

(Cambiantes - O Livro Derradeiro, LD)

O poeta, nascido João da Cruz a 24 de novembro de 1861, foi adotado pelo Coronel Guilherme Xavier de Sousa e esposa, senhores dos seus pais escravos, porque não podiam ter filhos. Recebeu uma educação conforme o melhor que a cidade de Nossa Senhora do Desterro (Florianópolis) era capaz de oferecer – ou seja, aquela a que só os filhos da alta sociedade tinham direito. Nunca desdenhou, porém, o amor pelos seus pais legítimos, o pedreiro Guilherme e a cozinheira Carolina Eva da Conceição. Sua capacidade e inteligência chegaram a suscitar reflexões acerca do equívoco da ideologia que rezava pela suposta inferioridade intelectual da raça negra. Ao ser nomeado promotor de Laguna, por um presidente de província em final de mandato, entretanto, foi impedido de assumir o cargo pela elite local. Fundou os jornais Colombo, Folha Popular e O Moleque, onde combatia o regime escravocrata e os preconceitos. Viajou pelo Brasil como ponto de uma companhia teatral e, também, fazendo palestras abolicionistas, até se radicar no Rio de Janeiro, em 1890.

A tematização do negro, direta ou indiretamente, é constante em sua poesia. Muitas vezes tal se dá através da universalização do seu drama pessoal, como se pode ler no primeiro livro de poemas: “Pedem-te bis e um bis não se despreza!/ Vamos! retesa os músculos, retesa/ Nessas macabras piruetas d’aço.../ / E embora caias sobre o chão, fremente,/ Afogado em teu sangue estuoso e quente,/ Ri! Coração, tristíssimo palhaço” (Acrobata da dor - Broquéis , B). Alguns anos mais tarde, o riso conquistaria outro teor, mais combativo: “Rir! Não parece ao século presente/ Que o rir traduza, sempre uma alegria.../ Rir! Mas não rir como essa pobre gente/ Que ri sem arte e sem filosofia./.../ Rir! Mas com o rir demolidor e quente/ Duma profunda e trágica ironia”. (Rir - Outros Sonetos - LD). Não há, como se pode ver, oposição entre o que é pessoal e comum a todos: “Por toda a parte escrito em fogo eterno:/ Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!” (Pandemonium - Faróis, F). O espaço restrito a que são relegados os marginalizados é tematizado: “Sim! Bendita a cova estreita/ Mais larga que o mundo vão,/ Que possa conter direita/ A noite do teu caixão!” (Canção do bêbado - F). Contra as dificuldades, o poder do coletivo: “Ó pobres! O vosso bando/ É tremendo, é formidando!// Ele já marcha crescendo/ O vosso bando tremendo..." (Litania dos Pobres - F).

No poema que abre Faróis, o filho homenageado é a própria salvação para o poeta: “Meu filho, frágil e terno,/ Socorre-me do atro Inferno” (Recolta de Estrelas - F). O futuro do rebento transforma-se em angustia, porém, em outro momento do livro: “Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!/ Sob a guarda piedosa e muda das Esferas/ Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,/ Frágil e pequenino e tenro como as heras./.../ Minh’alma se debate e vai gemendo aflita/ No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:/ Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,/ Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!" (Meu filho - F). Os dois filhos de Cruz e Sousa morreram ainda pequenos, e o que nasceu logo após a morte do poeta também veio a falecer. A esposa, Gavita, negra carioca, tomada pela loucura, muito sofreu até ser internada. Tal trajetória pessoal e familiar poderia ser resumida no verso “Sei que cruz infernal prendeu-te os braços” (Vida Obscura – Últimos Sonetos, US), onde o autor se utiliza do próprio nome como ícone da escravidão e suas conseqüências. Quando, como que por um milagre, Gavita retorna, sã e curada, o poeta não se contém de alegria: “Posso mesmo já rir de tudo, tudo/ Que me devora e me oprime./ Voltou-me o antigo sentimento mudo/ Do teu olhar que redime." (Ressurreição - F). Quanto às crianças, não apenas as suas, mas as de todos os afro-brasileiros, o autor interpela o próprio coração: “És tu que... a púrpura do amor vais estendendo/ Sobre as crianças, para protegê-las./.../ Vai, coração!...// As crianças negras, vermes da matéria,/ Colhidas do suplício à estranha rede,/ Arranca-as do presídio da miséria/ E com teu sangue mata-lhes a sede!" (Crianças Negras - Dispersas - LD). Cruz e Sousa não quer a submissão e propõe dar o troco: “Resume todos esses travos/ Que a terra fazem languescer./ Das mãos e pés arranca os cravos/ Das cruzes mil de cada ser.// A terra é mãe! – mas ébria e louca/ Tem germens bons e germens vis.../ Bendita seja a negra boca/ Que tão malditas coisas diz!” (Canção Negra - F). Para ele não existe consideração pelo que é humano se inexistir reprovação ao que corrompe e desumaniza: “Ódio são, ódio bom! sê meu escudo/ Contra os vilões do amor, que infamam tudo” (Ódio Sagrado - US).

Para o Ceará, a primeira província a abolir a escravidão, o poeta dedicou um soneto: “Da enérgica batalha estóica do Direito/ Desaba a escravatura – a lei cujos fossos/ Se ergue a consciência – e a onda em mil destroços/ Resvala e tomba e cai o branco preconceito.” (25 de Março – Outros Sonetos, LD). Em outro poema, ao afirmar que “O século é de revolta – do alto transformismo”, Cruz e Sousa propõe: “Se é força, se é preciso erguer um evangelho,/ mais reto, que instrua – estético – mais novo/ Esmaguem-se do trono os dogmas de um velho/ E lance-se outro sangue aos músculos do povo” (A revolta – Cambiantes – LD), onde as novas filosofia e estética se mesclam com a necessidade de superar o Império de Dom Pedro II.

E então? Ainda é possível se considerar este um poeta que traiu a sua cor e bajulou a sociedade escravocrata?

SIDNEI SCHNEIDER

Hora do Povo. São Paulo, 13 maio 2003. p.8